domingo, 12 de fevereiro de 2017

o oportunismo de Alekhine

A Escola Soviética do Xadrez, o trágico oportunismo de Alekhine, o Ogro de Baku e o professor Carlos Bellino

Escrito por  Antonio Monteiro

Há já algum tempo o professor de filosofia Carlos Bellino sugeriu-me que escrevesse um artigo sobre o xadrez e a política. O tempo foi passando e nada. 

Cheguei mesmo a pensar que o professor tinha-se esquecido da sua sugestão. Mas eis que numa das suas recentes viagens a Portugal me traz o livro: “A Vida imita o Xadrez” da autoria de Garry Kasparov. ‘Bom, a oferta de um livro por si só não obrigado a nada. Muito provavelmente ele terá o direito de esperar que eu leia-lhe o livro, mais nada. Até porque ele nem é o autor’, pensei com os meus botões. Esta minha opinião desfez-se como água na água, quando, para certificar-me de um pormenor, reabri o livro de Kasparov e, à luz de uma vela subitamente antiga, reli a dedicatória: “Para o António Monteiro, com amizade e esperando que este livro te traga inspiração para produzires mais e novas prosas sobre o xadrez e a política”. ‘Mil macacos me mordam se isto aqui não é uma intimidação, ainda que escrita com letrinha de filósofo’. Por isso, caro Bellino, aqui estou a cumprir o prometido.

Sinceramente nunca tive especial interesse pelo tema, o que não significa que ignoro completamente toda a prosa que desde o “Match do Século”, disputado em 1972, em Reykjavík, se tem escrito sobre as múltiplas imbricações entre o xadrez e a política. Para mim xadrez é xadrez, política é política e vida é vida. Proclamar, como pretende Kasparov, que a vida imita o xadrez, é esquecer uma verdade fundamental: o xadrez não passa de um jogo, aliás, de tabuleiro, embora possa ser colocado no mesmo patamar com a arte e o desporto. A ideia que o xadrez imita a vida não é nova e antigos campeões mundiais do passado estabeleceram esta ligação – com resultados trágicos como adiante veremos. Por razões de espaço concentremo-nos apenas em dois ex-campeões mundiais: Alexander Alekhine e Bobby Fischer. 

Os dois estavam convencidos de que tanto na vida como no xadrez Deus colocou um lance genial que permite aos simples mortais sair de qualquer situação por mais precária e desesperada que seja. O segredo está apenas em encontrá-lo. Ao fim e ao cabo a um mestre de xadrez tudo é permitido, conquanto ele encontre a jogada redentora na devida altura. Por isso Alekhine não se coibiu de colaborar com os nazistas durante a 2ª Guerra Mundial e de escrever artigos anti-semitas defendendo a tese que os judeus jogavam um xadrez defensivo, em que contava apenas o lucro material. Reivindicou que nunca houve um verdadeiro artista de xadrez de origem judaica e que só em solo nazi se podia respirar o xadrez puro. Alekhine incluiu nos representantes do xadrez ariano os nomes de Philidor, Labourdonnais, Anderssen, Morphy, Tchigorin, Pillsbury, Marshall, Capablanca, Bogoljubov, Euwe e Keres. Para jogadores judeus, havia somente Steinitz e Lasker. Quando este faleceu em 1941, Alekhine escreveu que tinha desaparecido o último campeão do mundo judeu. 

Apesar de toda a sua genialidade – e ele sempre será sempre lembrado pelas suas combinações antológicas, que ainda despertam admiração entre os melhores jogadores da actualidade – Alekhine, como homem e xadrezista, era um camaleão e um oportunista do piorio. A capacidade inata de se metamorfosear e de entrar na pele do seu adversário e derrotá-lo com suas próprias armas valeu-lhe espectaculares triunfos e mesmo a conquista do campeonato do mundo contra Capablanca. Quando o cubano deu-se conta de que Alekhine tinha estudado todas as suas partidas e estava a jogar contra si próprio, já era tarde e a sua heroica resistência apenas lhe aumentou a agonia: depois de quase dois meses e 34 partidas o até então tido como invencível foi destronado. Capablanca pediu imediatamente um match-revanche, mas o oportunista Alekhine preferiu dar primazia a jogadores que não representavam nenhum perigo para ele: escolheu Bogoljubow em duas oportunidades, vencendo ambos os matches folgadamente, em 1929 e 1934. A coisa pôs-se feia quando em 1935 enfrentou o relativamente desconhecido Max Euwe – e foi estrondosamente derrotado. O gentleman holandês aceitou logo um match-revanche no qual foi surpreendentemente derrotado. É que chocado com a derrota, sem ninguém se dar conta, nem o próprio Euwe, o mestre russo entrou num treinamento rigoroso e abstémico e recuperou o título dois anos depois. Alekhine tornou-se assim no primeiro campeão a conseguir recuperar o título num match-revanche. Capablanca não teve a mesma sorte, porque Alekhine cortou relações com ele e evitava sistematicamente participar em torneios em que o ex-campeão era convidado. Os dois mestres só se encontram 9 anos depois, em Nottingham, Inglaterra. Capablanca vence o torneio e derrota o seu arqui-rival no confronto directo. 

Devido aos artigos anti-semitas, e embora tecnicamente campeão do mundo, Alekhine não foi convidado para nenhum torneio de xadrez depois da 2ª Guerra Mundial. Em Março de 1946 morreu subitamente num hotel em Estoril, quando esperava pela concretização de um match redentor contra Botvinik. 

Escorraçado pela comunidade xadrezística internacional, Alekhine só encontrou guarida no Portugal cinzento e salazarista, onde faleceu só, empobrecido e odiado. A Federação Portuguesa de Xadrez encomendou o funeral, ao qual menos de 12 pessoas compareceram. Alekhine quase tinha encontrado o lance genial para se salvar – o match contra Botvinik. De facto, um dia após a sua morte uma carta chegou convidando-o a Inglaterra para o match, mas já era tarde. Enfim, um trágico oportunista. Desgraçadamente a vida é real, desgraçadamente ou felizmente o xadrez é apenas um jogo.

Ps: O Prof. Carlos Bellino regressou há já algum tempo de Portugal e voltou a surpreender-me com a oferta de mais um livro, neste caso os “Fundamentos do Xadrez”, da autoria de José Raúl Capablanca. Passe a redundância, “Fundamentos do Xadrez” é um livro fundamental da literatura xadrezística e de leitura obrigatória até para não-praticantes. Dentro em breve voltarei ao livro.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 793 de Cabo Verde, 8 de Fevereiro de 2017.

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