quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Robert James Fischer revisitado

Robert James Fischer revisitado

DO BLOG DO EIDER. Postado, quinta-feira, 22 de dezembro de 2011


É comum de tempo em tempo sair reportagem sobre o lendário enxadrista Estadunidense Bobby Fischer em diversos veículos de comunicação. Não é para menos, pois a revolução que ele causou no mundo do xadrez é digna de ser lembrada, estudada e louvada sem sombra de dúvidas. Dessa vez a reportagem que saiu no jornal on-line britânico TheGuardian foi a respeito de uma entrevista feita com o atual campeão mundial, o indiano Vishwanatan Anand, na qual ele declara ter se encontrado com Fischer em 2006. Alguns detalhes do relato de Anand me perturbam desde que eu comecei a ler sobre a biografia do Grande Mestre que no início da década de 70 mudou o rumo dos acontecimentos do xadrez mundial. Pretendo nesse post comentar sobre alguns desses detalhes que na minha opinião fazem toda a diferença quando discutimos a repeito de Robert James Fischer.

Na primeira frase da entrevista Anand diz: " eu encontrei Bobby Fischer surpreendentemente normal e calmo". Baseado em décadas de um discurso preconceituoso a respeito da personalidade de Fischer, Anand esperava encontrar uma pessoa louca e descontrolada. Sabemos que a mídia enxadrística vem reproduzindo sempre a mesma coisa desde a década de setenta: excêntrico, maniático, esquizofrênico, paranóico e coisas mais nessa mesma linha de raciocínio. E conceituando-o dessa maneira tão veementemente e por tanto tempo acabou-se criando um senso comum muito forte na imagem desse gênio. O resultado é que não vemos mais os fatos com os nossos olhos e sim a partir de um discurso pre-estabelecido. Discurso esse que tem uma finalidade muito específica: silenciar a perigosa visão de mundo do maior jogador de xadrez de todos os tempos.



Perigosa pra quem? essa pergunta é muito ingênua pra ser respondida secamente. Mas lembramos que o auge do gênio em questão coincide com o auge da guerra fria onde tudo era uma questão de ponto de vista, de posicionamento e que as opiniões eram formadas a seu respeito levando-se em conta o lado em que se estava na luta política. Fischer, inevitavelmente, levava consigo o peso de sua nacionalidade para onde quer que fosse e era símbolo de uma ideologia capitalista anticomunista pautada pelo individualismo exacerbado. Portanto, podemos dizer sem medo de errar que ele não era visto com bons olhos pelo lado socialista do mundo - e, como sabemos, a nação ícone do socialismo era a união soviética que, por sua vez, dominava o cenário do xadrez mundial. Korchnoi, Petrosian, Spassky, Tal, são apenas alguns das dezenas de nomes que podem ser citados.


Como o xadrez acabou se tornando mais uma extensão da intensa luta política entre duas ideologias antagônicas que apenas se aproximavam em seus paradoxos, não era interessante para a URSS um herói norte-americano, sobretudo se esse herói fosse carismático. E Fischer em 1962 teve um dos seus maiores sucessos em sua curta trajetória no xadrez: ele venceu o Interzonal de Estocolmo com 2,5 de vantagem sobre os seus maiores rivais soviéticos, finalizando com 80% de aproveitamento e sem ter sofrido uma derrota sequer. Segundo Korchnoi nos conta em sua autobiografia intitulada no castelhano El ajedrez es mi vida... y algo más a imprensa soviética tinha grande influência sobre os meios de comunicação, ainda mais quando se tratava de xadrez e foi desde então que começou a campanha de difamação da personalidade de Bobby Fischer.

"Fischer comenzó a ser criticado en todo el mundo del ajedrez como una persona que se comportaba de forma inapropriada, causaba escándalos y violaba las reglas elementales de conducta, provocando innumerables problemas en los torneos tanto a los organizadores como a los participantes". (P.52)

No entanto, Korchnoi na sequencia de seu relato, diz que pelo que ele recorda pouquíssimos jogadores tinham do que reclamar de Fischer, pois sua conduta diante do tabuleiro era impecável e que suas "chatices" em relação aos organizadores contribuiram de forma decisiva para a profissionalização do xadrez. Mas nesse momento os problemas com a imprensa e com a construção do discurso do senso-comum dos enxadristas pelo mundo todo tinha em contrapartida os meios de comunicação ocidentais que prestigiavam Bobby e faziam uso de sua imagem como propaganda política Estadunidense. Até então tudo ocorria bem para Fischer, pois era assim mesmo que funcionava o jogo de opostos na guerra fria - mal falado lá, bem falado aqui, não havia como ser diferente.

É quando as idéias políticas de Fischer começam a se tornar mais complexas e perigosas também para o ocidente que seus reais problemas com seu posicionamento perante as coisas do mundo iniciam. No entender dele os paradoxos da sociedade capitalista se tornam tão nocivos quanto os paradoxos da sociedade socialista. A "ditadura do capital" sustentada e legitimada pela aparente imaculável democracia é tão sanguinária quanto a "ditadura do proletariado" soviética. Tudo se mescla, o bem e o mal se fundem no turbilhão de idéias do gênio. Seu anticomunismo acaba se tornando também antimericano e ele solitário abandona tudo. Numa carta de boas vindas ao Ocidente destinada ao dissidente soviético Korchnoi, Fischer chama essas forças de Forças do Mal. Para tentarmos entender melhor essas idéias, abaixo disponibilizo essa carta traduzida por mim ao português:

Pasadena 9 de junho de 1977

Querido Victor, como está você?Fico feliz que as coisas estejam funcionando para você em sua nova vida. Eu vi seu amigo Ives Kraushaar hoje e nós nos demos muito bem. Fico feliz que ele esteja te ajudando a se ajustar à vida do ocidente. Por causa de minha atitude intransigente em relação ao comunismo, eu tive meus problemas, mas assim é a vida. Eu não acredito em comprometimento, acomodação e submissão ao mal. É assim que são todas as coisas. Espero te ver nos Estados Unidos, na Europa ou em qualquer outro lugar logo.

Tudo de melhor e felicidades para você.

Bobby Fischer

Nessa carta fica claro o seu anticomunismo, mas se pensarmos no que ele diz a respeito de ser contrário ao "comprometimento, acomodação e submissão ao mal" talvez possamos pensar em algo muito mais abrangente. Em 1992 Fischer deliberadamente desobedece o decreto que diz que nenhum cidadão Estadunidense pode em hipótese alguma entrar num país socialista sem autorização do Estado Americano: sabemos que ele jogou o match revanche comemorativo dos 20 anos de sua vitória pelo título mundial em 1972 contra Spassky na Ioguslavia que era um país de regime socialista. Na ocasião, Fischer cuspiu publicamente num documento oficial do estado americano que o proibia de entrar no país Ioguslavo, demonstrando total negligência com suas leis e com a sua própria cidadania. Essas idéias eram perigosas demais para a manutenção do status quo capitalista. Bobby se identificava com a luta de Victor contra as forças opressoras da ditadura soviética, pois ele mesmo tinha uma luta parecida no ocidente. Era preciso silenciar o seu discurso. Por essa razão a imprensa ocidental também comprou o discurso a respeito de Fischer que já era muito bem conhecido e aceito no leste europeu e começa a insistente reiteração às suas deficiências psicológicas. A idéia que até hoje é estampada em qualquer reportagem que tenha relação a Bobby Fischer é a de desvalorização de seus pensamentos, de seus discursos políticos, taxando-os simplesmente de paranóicos: não há como dar valor para o que um louco fala.

Voltando a entrevista citada no início do texto, Anand influenciado por décadas de prática discusiva sobre Bobby Fischer em Jornais, Revistas, Rádio e Televisão, não consegue ver outra coisa a não ser Bobby preocupado com gente que o esteja seguindo e segundo Anand isso simbolizava que sua paranóia nunca o abandonou. Talvez ele estivesse preocupado com jornalistas - apenas isso.
Embora Fischer pudesse ter vivido uma vida muito bem ajustada como campeão mundial, com muito dinheiro e fama, ele escolheu ir para um outro lado na luta política mundial ao não se submeter, ao escolher um lado muito específico em sua ideologia quase anarquista, ao se negar ser marionete no complexo jogo das relações de poder. Num jargão muito bem conhecido pela psicologia podemos concluir que Robert James Fischer era um Desajustado.


Referências
KASPAROV, Garry. Meus Grandes Predecessores V.4. Ed. Solis. Santana de Parnaíba, SP: 2006
KORCHNOI, Viktor. El ajedrez es mi vida.... y algo más. Ed, Chessy. Santa Eulalia de Morcín, ES: 2010
http://www.guardian.co.uk/sport/2011/dec/02/vishy-anand-small-talk-interview
Bobby Fischer tells the truth nothing but the truth
http://www.youtube.com/watch?v=QryuMf8qZ0g Acesso em: 23/12/2011
Bobby Fischer Spits
http://www.youtube.com/watch?v=RjbaSVXUq5c&feature=related Acesso em 23/12/2011



Fonte: http://www.cruzeider.blogspot.com/2011/12/robert-james-fischer-revisitado.html