sábado, 20 de agosto de 2016

DESTRUINDO MITOS

Anatoly Karpov, 1975-1985
Por Yasser Seirawan



Este capítulo é dedicado ao Campeão Mundial de 1975 a 1985 Anatoly Yevgenyevich Karpov, um enxadrista de poderes extraordinários.


Enquanto o nome de Spassky está ligado ao de Fischer, o nome de Karpov está inextricavelmente vinculado não a um, mas a dois grandes enxadristas: Robert James Fischer e Garry Kasparov. Anatoly, ou “Tolya”, foi, afinal, o vilão que recebeu a coroa do título do Campeonato Mundial de Xadrez de Bobby Fischer por manter desistência. Para fãs como eu, sabíamos que, se Bobby tivesse disputado o match de 1975, ele teria vencido. Depositar uma coroa de louros nos ombros de Anatoly foi um insulto para os fãs do xadrez e uma traição do título. Para milhões de fãs dedicados do xadrez, o título “Campeão Mundial” deveria significar também o de “melhor jogador do mundo”. Eu estava convencido de que, em 1975, Bobby era o melhor enxadrista do mundo. Pouco me importava o que algum delegado nacional presente em uma Assembléia Geral da FIDE pudesse dizer sobre o assunto. A única opinião que contava – ao menos para mim – era a minha.



Quem é o dono do título?

A concessão do título mundial a Karpov em 1975 levantou uma questão profunda e extremamente perturbadora para o mundo do xadrez. Quem “é o dono” do título de “Campeão Mundial”? Antes de Mikhail Botvinnik, o público certamente reconhecia os Campeões Mundiais como “detentores do título”, mas eles eram donos dele? O título não era uma propriedade que se pudesse passar para outra pessoa. Quando Emanuel Lasker tentou em 1920 conceder o título a seu Desafiante, José Raúl Capablanca, sem jogar, o público não queria saber daquilo e recusou-se a aceitar a decisão de Lasker. O match foi disputado em Havana após longos atrasos. Antes de começarem as partidas, Lasker insistia em ser tratado como o Desafiante. Como deixa claro em sua correspondência, ele já tinha entregado o título a Capablanca antes de o match ter começado. Agora, pelo menos em seu modo de ver, ele estava jogando para reconquistar a coroa perdida. O público não compartilhava do ponto de vista de Lasker. Lasker era o Campeão Mundial e reconhecido como tal pelo público até o dia em que abandonasse o título em um match disputado. Mas ele não era um título ou propriedade que ele pudesse ceder ou entregar a um Desafiante, digno disso ou não. O Campeão Mundial possuía o título, como um zelador, mas não era dono dele. Quando Alekhine morreu como detentor do título, um novo evento era necessário. Ele tinha que ser organizado de tal forma que o público aceitasse que a disputa criava legitimamente um digno novo Campeão Mundial ou pelo menos alguém que tivesse feito o suficiente para poder-se dizer: “Bem, dos Candidatos, ele está perto o suficiente.” Perto o suficiente para reivindicar ser o melhor enxadrista do mundo.



O verdadeiro Campeão Mundial poderia jogar, por favor?

Da morte de Alekhine enquanto ainda era Campeão Mundial, avançamos rapidamente no tempo até Anatoly Karpov em 1975. Anatoly certamente havia realizado o que as regras exigiam para tornar-se Desafiante. Mas o sentimento geral das pessoas era que havia um abismo entre o Desafiante e o Campeão e que Bobby era simplesmente muito superior. Diferentemente de Alekhine, Bobby não tinha falecido e, embora Anatoly estivesse perto, ele não era a coisa de verdade. Ele não estava perto o suficiente. E aí estava a dificuldade: em 1975, Anatoly Karpov era um Campeão no papel e o público, certamente o público ocidental, simplesmente não estava a fim de ser enganado pela FIDE. Assim, iniciou-se uma estranha interação de dinâmicas que duraria duas décadas, se não mais.


“Todo mundo” (isto é, fãs como eu) sabia que Bobby Fischer era o melhor enxadrista do mundo, mas enquanto ele se mantivesse fora da competição nada havia a debater. O “verdadeiro Campeão” não estava jogando e não mostrava nada. Já Anatoly queria desesperadamente ser aceito como um genuíno Campeão Mundial, além de ser reconhecido como o melhor enxadrista do mundo. Sua missão era simples: se ele queria ser tratado ou considerado o Campeão Mundial, teria que jogar contra os melhores enxadristas nos melhores torneios e vencer. E vencer com frequência. E o fez. Anatoly era o melhor enxadrista do mundo entre os Grandes Mestres ativos.

O primeiro teste de Anatoly como “Campeão defensor da FIDE” foi em 1978, quando enfrentou novamente Victor Korchnoi, desta vez sancionado como Campeão Mundial. Venceu o match com a estreita margem de 6 vitórias contra 5 derrotas e 21 empates. No final do match, Anatoly estava minguando, perdendo três das últimas cinco partidas. Sua vitória foi por muito pouco e não dissuadiu seus críticos, mesmo que relutantemente admitissem que derrotar Victor Korchnoi, o segundo enxadrista mais bem classificado, não era pouca coisa. A margem de vitória foi dolorosamente pequena. Outro ciclo de três anos veio e se foi; Anatoly manteve-se um Campeão Mundial ativo, vencendo ou empatando em primeiro lugar em praticamente todos os eventos de que participou. Em 1981, ele enfrentou Victor Korchnoi pela terceira vez em um match para decidir o título mundial. Dessa vez o resultado foi um desempenho decisivo de 6 vitórias, 2 derrotas e 10 empates. Anatoly dominou o mais curto match pelo Campeonato Mundial na história do Pós-guerra. Um novo Karpov, versão 3.0, nasceu. O Anatoly Karpov do período de 1981 a 1984 era um enxadrista que o mundo raramente tinha visto antes. Esse não era um Campeão Mundial do tipo “primeiro entre iguais” – esse era um Campeão Mundial que tínhamos esperado que Bobby Fischer se tornasse: um Campeão Mundial de credenciais indiscutíveis, bem superior a seus colegas. Anatoly jogou em todos os principais eventos e venceu a maioria. No período de 1977 a 1985, um novo tipo de evento estava nascendo: o evento de Categoria 15 – um evento tão forte que, na história do xadrez, somente um punhado tinha sido realizado; eventos de Categoria 15 tornaram-se competições anuais e Karpov venceu ou dividiu o primeiro lugar em praticamente todos eles.

Todo enxadrista tem uma opinião sobre o que teria acontecido em um hipotético confronto entre Bobby e Anatoly em 1975. Eu não sou diferente. Bobby teria vencido por 10 a 4 com aproximadamente 20 empates ao longo do caminho. Mas, em 1984, Anatoly Karpov tinha evoluído para um formidável Campeão Mundial e teria derrotado qualquer Desafiante, inclusive, em minha avaliação ao menos, Bobby. É realmente inacreditável como Anatoly estava bom durante esse período. Em minha opinião, Anatoly Karpov é o segundo melhor enxadrista que o mundo já teve.

Mas Karpov sofreu um destino cruel. Teve que lutar com um adversário que ninguém podia superar – a sombra de Bobby Fischer. Por maiores que fossem suas realizações, ninguém podia saber com certeza se Karpov era o verdadeiro Campeão, pois ele jamais jogou contra seu maior rival. Isso foi uma tragédia para o mundo do xadrez, para Anatoly e, possivelmente, também para Bobby.

Apesar disso, Karpov compilou um histórico em torneios e matches que jamais será igualado, nem mesmo pelo maior enxadrista de todos os tempos, Garry Kasparov. Existe uma ironia verdadeira no segundo golpe sofrido por Karpov pelos Deuses do Xadrez – ele era o Campeão Mundial quando Kasparov entrou em cena, e teve que lutar não apenas com uma sombra que não jogava, mas com um adversário real que jogava. Os dois disputaram um número estarrecedor de matches. Antes de nos voltarmos para a rivalidade entre Karpov e Kasparov, não estarei exagerando ao enfatizar que Karpov era muito mais do que a ponte entre Fischer e Kasparov – ele era um enxadrista incrivelmente poderoso por seu próprio mérito e os enxadristas devem ser eternamente gratos por ele ter enfrentado seus rivais com tamanha determinação.


O infame Match de 1984

Vamos fazer uma pausa para compreender a grandeza de Karpov. Em 1984, quando defendeu seu título, dessa vez contra um novo Desafiante, Garry Kasparov, no famoso primeiro match cancelado, Karpov liderava com cinco vitórias a zero. Pare para pensar sobre o fato por um instante. Garry Kasparov, que ascenderia para tornar-se o maior enxadrista de todos os tempos, estava sendo esmagado por 5 a 0 pelo Anatoly Karpov de 1984. Nossa, esta é uma distância com seus rivais que somente Bobby Fischer na safra de 1971 foi capaz de demonstrar.

Muitos especialistas, inclusive eu, sugeriram que, se Anatoly tivesse vencido o match de 1984 por 6 a 0 (desconsiderando os empates), Kasparov teria sido psicologicamente destruído e não teria se tornado o Kasparov que conhecemos hoje; que, sem dúvida, impulsionado por tão imensa vitória, Karpov teria mantido seu título por mais dez anos e continuaria sendo o maior jogador de todos os tempos. Este é meu modo de ver: Karpov vence o match de 1984 com uma vitória esmagadora de 6 a 0, Garry nunca se recupera totalmente de tamanho desastre, e Karpov permanece no topo do trono por mais uma década. Depois de um total de 20 anos de supremacia, ele terminaria sua carreira como o maior enxadrista de todos os tempos. Anatoly chegou perto assim desta história de grandeza no xadrez.

Mas não foi isso o que aconteceu. O que aconteceu é simplesmente surpreendente. Minha única descrição é “sobre humano”. Perdendo de 5 a 0 após 27 partidas, Garry Kasparov encontra recursos dentro de si que nem sabe que existem. Enfrentando a mais horrível provação possível para um profissional do xadrez, Kasparov luta com cada pingo de determinação que pode reunir. Ele não pode perder uma única partida. Ele vai empatar e empatar – para sempre se necessário – mas não vai perder. Ele não pode perder. O confronto não é mais um jogo ou um duelo esportivo – em vez disso, transcendeu o xadrez e transformou-se em uma luta entre a vida e a própria morte. A perda de uma única partida significa a morte de uma carreira. Kasparov deve ficar com seu adversário, aguentando dia após dia, suportando o que de melhor Karpov tem a oferecer. Nenhum dos enxadristas está muito interessado em correr riscos. Karpov quer uma derrocada de 6 a 0. Com a Partida 32, o pesadelo de Kasparov termina: é sua primeira vitória naquele match. Excepcional. A ameaça de perder de maneira desonrosa acabou. Caso Karpov agora vença o match, Kasparov terá o consolo de ao menos uma vitória.



Mais uma vez, a ação defensiva de “não dever perder nenhuma partida” continua. Karpov é incapaz de levar o match até a linha de vitória. Depois de cinco meses e 46 partidas, o match continua parado em 5-1. Os organizadores e jornalistas estão ficando exaustos e impacientes. Alguns repórteres foram colocados em Moscou desde antes do início das partidas e permaneceram por seis meses. Os quartos de hotel tornaram-se lares; as vozes de entes queridos no outro lado das linhas de telefone estão mudando; os orçamentos estouraram e ninguém sabe ao certo o tamanho do prejuízo. Subitamente, o match interminável toma um rumo totalmente novo: Kasparov vence, consecutivamente, as Partidas 47 e 48. O placar do match é de 5 a 3 e, pela primeira vez em meses, as coisas ficaram interessantes. Um turbilhão de atividades acontece e os boatos são muitos: diz-se que Karpov está exausto; existe uma sugestão de médicos não identificados de que a saúde dos competidores poderia estar ameaçada; diz-se que os organizadores estão considerando mais uma mudança de local; existe a possibilidade de um adiamento de um mês como intervalo oficial antes da retomada do match; as autoridades da FIDE estão cogitando o cancelamento do match, programando um novo confronto com um número definido de partidas. Em suma, os boatos corriam, e ninguém sabia ao certo o que aconteceria. De qualquer forma, para quando estava programada a Partida 49?

Nenhuma decisão da magnitude de cancelar o match de 1984/85 é tomada apenas por uma razão. Há sempre uma multiplicidade de causas para esse tipo de decisão e para o que acontece. Talvez jamais saibamos todos os fatores e a dinâmica. O que realmente sabemos é que o presidente da FIDE, Florencio Campomanes, tomou uma decisão de longo alcance: ele cancelou o match “sem resultado” e convocou um novo match de 24 partidas com um placar redefinido em zero a zero. O mundo do xadrez ficou em pé de guerra.

Muitas cargas de caneta foram gastas sobre o cancelamento, mas minhas opiniões são agnósticas. Não resta dúvida de que o match tinha ido muito além do que toda pessoa sensata poderia esperar. Cinco a seis meses para um evento esportivo? Os limites máximos do extraordinário há muito haviam sido ultrapassados. De todas as pessoas envolvidas no match, Campomanes deveria ter compreendido que uma medonha possibilidade como a de um match infindável era real. Ele tinha sido o organizador do confronto de 32 partidas em Baguio City entre Karpov e Korchnoi em 1978 que terminou em 6 a 5. Aquele match, parecido com uma maratona, estava começando a testar a paciência dos organizadores quando também chegou-se a uma súbita e furiosa conclusão: Korchnoi venceu três das últimas cinco partidas, mas perdeu a partida que Kasparov não perderia: a partida final.

Campomanes sabia que as regras de “precisar vencer seis partidas” tinham sido adotadas em 1975 como uma forma de apaziguar as exigências de Fischer para um match de “precisar vencer dez partidas”. Na época do confronto de 1984-1985, essas regras tinham perdido sua utilidade, pois tinham sido colocadas em vigor para atrair e tirar Bobby Fischer da aposentadoria e aquele gambito tinha falhado há muito tempo. Era hora de abolir aquele sistema e retornar ao formato de 24 partidas para o qual os organizadores poderiam fazer um orçamento adequado. O match cancelado de 1984/85 forçou essa decisão racional.


Mitos e lendas

Já deve estar claro para o leitor que Campeões Mundiais são o material de lendas. As impressionantes habilidades de todo Campeão Mundial, de Steinitz a Kasparov, prestam-se à criação de mitos. Talvez sempre tenha sido verdade que os próprios Campeões Mundiais desempenharam um papel na criação de seus próprios mitos, mas a mitologia em torno de Fischer, Karpov e Kasparov atingiu níveis nunca vistos.Examinemos primeiramente o mito de Kasparov no confronto de 1984-1985.


O mito do Match Roubado

Quando o primeiro match Karpov-Kasparov foi cancelado, com o placar a favor de Karpov, a reação de Kasparov foi muito diferente do que talvez você tenha imaginado. Surpreendentemente, o condenado, Garry Kasparov, e seus defensores no Ocidente criticaram violentamente as ações de Campomanes, rotulando-as de “Dia da Vergonha”. Em uma descrição mais sinistra, Kasparov vê Campomanes como um amigo íntimo e (mais sombriamente) talvez até como um parceiro de negócios de Karpov. (Nunca foram apresentadas provas de quaisquer transações comerciais mútuas.) Campomanes, fomos informados, “obedeceu ordens” (provavelmente da KGB – aqueles c***lhas!) ou cancelou o match para “salvar” Karpov e seus acordos comerciais mutuamente lucrativos de uma derrota/colapso catastrófico! Sem dúvida, bilhões estavam em jogo.

Vamos pensar sobre estas alegações por um instante. Afora a conjectura quanto à motivação de Campomanes, é possível argumentar convincentemente que foi Kasparov, e não Karpov, quem mais sofreu com o término do match? Eu acho que não – a decisão de Campomanes de cancelar o match servia a Kasparov perfeitamente. Ele receberia um novo match, uma planilha limpa, por assim dizer; o presente placar deficitário de 5 a 3 foi apagado. Dia da Vergonha? Vamos ser absolutamente claros: que tal um “Dia da Comemoração”? E estourar o espumante. Não podia ter sido melhor para Kasparov. Inversamente, a decisão de Campomanes foi terrível para Karpov. Sua liderança anterior de 5 a 0 tinha se evaporado, e sua liderança presente de 5 a 3 também foi apagada. Percebendo o óbvio, Karpov queria que o match continuasse, alegando que não estava exausto e que quaisquer declarações em contrário eram falsas. Não senhor, ele estava com todo o gás e ansioso para brigar.

Não sou médico e evidentemente não tive a chance de examinar Karpov para determinar seu estado de saúde quando o match terminou. Sua alegação de que ele estava em forma é tão improvável de ser verdadeira quanto as alegações de Kasparov de que o match foi cancelado para salvar Karpov da derrota certa. Evidente-mente, o match  teve um efeito adverso em Karpov, assim como ocorreu em seu exaustivo match contra Korchnoi em 1978. Mas as chances de Karpov perder três partidas contra vencer uma eram com certeza pequenas. Na época do cancelamento, Kasparov estimou que sua chance de vencer o match de 1984/85 caso ele continuasse era de uma em três. Eu acho isso muito otimista. Em minha opinião, as chances de vitória de Kasparov eram no máximo de 25%, o que significa 75% de chances de que ele teria perdido. Embora Kasparov ainda sustente sua hipótese do “Dia da Vergonha”, acusando “Karpomanes” (uma mistura dos nomes de Campomanes e Karpov) de ter cooperado com a Federação de Xadrez da URSS para salvar seu homem, é realmente hora de deixar a questão em suspenso. Embora eu discorde com a estimativa de Kasparov sobre suas chances, vamos dar a Garry o benefício da dúvida e aceitar seus 33% de chances de vencer. Isso significa 66% de chances de perder e, assim, quem se beneficiou mais com a decisão do cancelamento?


Recentemente, li um artigo de Kasparov na New In Chess Magazine (2008, número 5, páginas 62-70). Referindo-se à Partida 48, ele escreveu: “Eu acho que esta partida não foi somente a melhor que joguei em cinco meses, mas também a melhor do match como um todo.” Aqui Garry demonstra um pendor pela história revisionista, talvez oriundo de seus primeiros anos na União Soviética. Ao que parece, Kasparov, depois de fazer uma apreciação mais profunda e objetiva do match, chegou a uma conclusão atordoante: as Partidas 47 e 48 foram duas das melhores partidas produzidas em todo o match! Se, como sugerido por Garry, ambos os jogadores jogaram um xadrez de extraordinário alto nível naquele momento, deve ter sido por causa do aquecimento das 46 partidas... Mas onde isso coloca a alegação de Garry em 1985 de que Karpov estava exausto e de que, se ele era incapaz de continuar, deveria abandonar o match?

Bem, se aceitarmos este revisionismo, peço a mesma oportunidade de também re-visar minhas opiniões. Dê-me um novo Karpov em plena forma e eu aumento minha estimativa de 75% de uma vitória de Karpov se o match tivesse continuado para 80 ou 90%. Se o Anatoly Karpov de 1984, jogando o melhor xadrez de sua vida, precisava ganhar apenas uma partida antes de perder três em um match no qual os empates não contam, sinto-me em terreno firme com minha estimativa de 80%. Karpov era o melhor enxadrista do mundo em 1984-1985 e, certamente, ninguém podia dar-lhe uma vantagem de 3 a 1. Qualquer coisa podia ter acontecido, mas vamos manter os pés no chão...

O resto, como se diz, é história. Kasparov venceu o match seguinte, tornando-se o mais jovem Campeão Mundial na história. Ele passaria a dominar o xadrez durante os vinte anos seguintes, como descobriremos nos capítulos a seguir.

Com demasiada frequência, olhamos a vida com as lentes de nossos próprios olhos, deixando de considerar as opiniões de nossos opositores e se sua opinião é justa ou não. Muitas vezes já me perguntei o que Garry poderia ter dito se os papéis fossem invertidos e se sua liderança de 5 a 3 tivesse sido apagada. Neste caso, sua hipótese sobre o “Dia da Vergonha” teria sido justificada. Na realidade em que a maioria de nós vive, a hipótese de Garry me parece absurda, mas ela tomou proporções mitológicas sem um bom motivo. Afinal, ele tornou-se Campeão Mundial no final de 1985.


O mito de Fischer como Davi contra Golias

Vamos corajosamente afirmar o óbvio: todos nós somos tanto santos como pecadores. Anatoly Karpov não era nem é diferente de todos e de cada um de nós. Ele tem seus pontos bons e ruins, seus altos e também seus baixos. Tudo faz parte de nossa comédia humana. Ninguém é perfeito.

Para quem pensa que vou pôr Karpov nas alturas, este capítulo será uma surpresa, e para quem pensa que, como fã de Bobby Fischer, vou jogar Anatoly na lama, errou também. Serei claro: eu tenho grande admiração por Anatoly. Suas partidas e realizações são incríveis e dignas de nosso maior respeito. Ele com certeza recebeu muita ajuda ao longo do caminho, mas frequentemente a ascensão de “programa de esportes” de Karpov no Campeonato Mundial é contrastada com o mito de Fischer como o lobo solitário. O público do xadrez há muito é alimentado com a fábula de que Bobby Fischer desafiou sozinho o rolo compressor do xadrez soviético e, em reverência ao gênio individual, derrotou o sistema esportivo socialista soviético construído durante décadas. Que evocativo. O gênio solitário defendendo o direito contra a força; liberdade individual versus formação sistêmica em camisa de força; Bobby lutando contra todo um aparelho governamental para arrebatar o Campeonato Mundial de Xadrez. Puxa! Visto deste ângulo, um brilhante enredo de cinema. Hollywood não poderia fazer melhor – deve haver um filme aqui em algum lugar. Quero dizer, não é legal isso? Legal, mas nonsense ["sem sentido", "contra censo" ou "absurdo" é uma expressão inglesa que denota algo disparatado, sem nexo].

Para pôr as coisas em perspectiva, é verdade que, do ponto de vista do xadrez em si, Fischer era em grande parte autodidata. Aquilo de que ele carecia da formação formal institucionalizada que caracterizava a “escola soviética de xadrez”, compensava com uma determinação obstinada e trabalho árduo. Ele estudava as partidas dos melhores enxadristas soviéticos e lia a literatura de xadrez russa avidamente. No fim, Bobby “sovietizou-se mais do que os próprios soviéticos”, e fez isso apenas com modesto auxílio de seus colegas.

Mas isso é apenas parte da história. Vamos começar com o fato mais simples: no ciclo de três anos que Bobby venceu, ele não se qualificou. Bobby, “sem ajuda de ninguém”, retirou-se do ciclo porque boicotou o Campeonato dos Estados Unidos de 1969, que casualmente era também um qualificador zonal e a primeira etapa no ciclo do Campeonato Mundial. A lenda poderia ter terminado ali: “Desculpe-nos imensamente, Bobby, mas você está fora dessa. Você pode tentar novamente no próximo ciclo de três anos, o que começa em 1975. Tchau. Cuide-se bem”.

Foi a decisão de Pal Benko, o qual tinha se qualificado no Zonal dos Estados Unidos, de retirar-se e ceder sua vaga de qualificação em favor de Bobby que permitiu que ele competisse no Interzonal que o colocou no caminho do estrelato. Vou repetir: Bobby estava fora e, somente porque Pal Benko foi capaz deste fantástico gesto esportivo, Bobby pôde crescer.

Assim como a tentativa de Lasker de dar seu título a Capablanca sem jogar, não estava sequer claro que Benko tinha o direito de transferir sua vaga de qualificação a um enxadrista de sua escolha. Se Pal queria se retirar do ciclo, não seria o jogador no Zonal, que era o próximo na fila, a subir para substituir Pal? Na verdade, todos os enxadristas americanos no Zonal teriam que concordar em deixar que Bobby tomasse a vaga de qualificação de Pal e abrir mão de seus direitos e reivindicações. Além disso, o Comitê Central da FIDE também teria que aprovar essa troca. As regras eram claras: os melhores jogadores do Zonal se qualificavam para as etapas seguintes da disputa. Jogadores ausentes não recebiam tratamento preferencial. Foi nesse comitê que as autoridades da USCF trabalharam imensamente para assegurar os votos necessários que permitiram que Bobby jogasse.

Escreveu-se que Pal recebeu dinheiro para ceder seu lugar. Isso não é verdade. Pal retirou-se pelo mais simples dos motivos: ele achava que Bobby tinha uma genuína chance de se tornar Campeão Mundial, certamente uma chance melhor do que ele mesmo. Ele estava disposto a ceder seu lugar, mas somente para Bobby. Assim, só para começar, Bobby precisou e recebeu ajuda de Pal Benko. Se Pal tinha esperanças de remuneração, só havia uma: se Bobby avançasse bastante no ciclo, talvez ele pudesse ser um técnico ou assistente.

Depois, todos os participantes no Zonal dos Estados Unidos de 1969 tinham que concordar com a decisão de Benko de trocar com Bobby. Se Benko queria sair, tudo bem, essa era sua decisão; mas o camarada atrás de Benko que teria se qualificado teria que abrir mão de seu direito. E assim por diante. Nenhum desses enxadristas foi pago para ceder seus direitos. Eles todos queriam ver Bobby jogar – vê-lo jogar e vencer.

Podemos ver que, fora do tabuleiro, Bobby precisou de ajuda para ter sua chance no Campeonato Mundial, e a recebeu. E a história não termina aí.



Depois de ter garantido o lugar de Bobby no ciclo através da aprovação do Comitê Central da FIDE, a USCF veio em seu auxílio e o apoiou sem reservas. O diretor executivo da USCF, o coronel Ed Edmondson, dedicou a maior parte de seu tempo e energia para garantir que Bobby recebesse todo o apoio de que precisava. Para citar o ex–diretor executivo da USCF Al Lawrence: “Leroy Dubeck, presidente da USCF de agosto de 1969 a agosto de 1972, lembra que, quando assumiu, concordou com o então diretor executivo Ed Edmondson de concentrar todos os recursos da federação de xadrez em um único objetivo monumental – dar a Fischer a chance de vencer o Campeonato Mundial. Para esse propósito, os dois inclusive redirecionaram todo o dinheiro obtido com sócios vitalícios em vez de investi-lo.” (Chess Life, setembro de 2007, página 25.) Junto com Leroy Dubeck e Ed Edmondson, havia Fred Cramer, também da USCF, que ajudou Fischer com acordos e numerosas questões jurídicas.

Os Grandes Mestres Bill Lombardy e Lubosh Kavalek estavam lá para oferecer seus serviços da forma como pudessem, assim como o Mestre Internacional Anthony Saidy, amigo íntimo de Bobby. Havia Lina Grumette, uma senhora de idade adorável, figura materna para Bobby, a qual, da mesma forma, dedicou-se a apoiá-lo. Por muitos anos na adolescência, Bobby hospedou-se em sua casa, onde ela devotou-se ao bem estar dele. Existe uma história famosa de Lina no cinema com Bobby em Reykjavik em um momento crítico no match de 1972, dizendo-lhe resolutamente para apenas jogar e vencer. Havia torrentes de pessoas, organizadores, fãs e jornalistas ansiosos para ajudar Bobby, desejando-lhe sucesso, instigando-o a seguir adiante.

Houve uma profusão de apoio de todos os cantos. Se Bobby tivesse feito um apelo público aos fãs do xadrez em 1975 e dito: “Por favor, preciso de sua ajuda. Envie 50 dólares para minha verba de treinamento e ajude-me a manter meu Campeonato Mundial. Com seu apoio, eu prometo competir e, se a competição não acontecer, devolverei sua doação...”, suspeito que eu, um jovem de 15 anos com pouco dinheiro, e um milhão de outros fãs de xadrez dos Estados Unidos teríamos feito a doação. E de bom grado. Bobby teria uma reserva de guerra de 50 milhões de dólares quase da noite para o dia, tamanho era o “apoio” que ele tinha. A própria sugestão de que Bobby fez o que fez sozinho é um mito criado pela mídia e desvaloriza os imensos esforços das muitas pessoas sem as quais Bobby teria continuado sendo uma possibilidade para o mundo do xadrez. Para colocar a questão sem rodeios: sem ajuda, Bobby não chegou a parte alguma. Ele se retirou do ciclo. A verdade simples é que Bobby às vezes era seu próprio pior inimigo e isso lhe custava muito caro: às vezes ausentava-se, às vezes retirava-se e geralmente sabotava suas próprias campanhas. Foi a assistência de algumas pessoas-chave em momentos decisivos que ajudou a empurrar, convencer e instigar Bobby a encontrar o seu destino. Não se esqueçam do telefonema do Dr. Henry Kissinger que fez Bobby embarcar no avião para a Islândia. Sem ajuda? Por favor!


O mito de Karpov e da igualdade de condições

Bobby Fischer foi o pior pesadelo da máquina de xadrez soviética que se tornou realidade. Eles precisavam de um Karpov e, parafraseando um velho ditado, se Karpov não tivesse existido, teriam que inventá-lo. Inventaram? Karpov era um grande enxadrista mas, como porta-bandeira do xadrez soviético e do Estado soviético, ele foi plenamente apoiado com o máximo de privilégios possível. Nenhum enxadrista jamais desfrutou tanto as doações oferecidas pelo Estado e pela FIDE quanto Anatoly Karpov. Poderia tê-lo feito sozinho? Karpov superou a sombra de Fischer sendo um “Campeão ativo” que, merecidamente, deixava que suas peças e peões falassem por si? Como veremos, Anatoly usufruiu de todas as vantagens possíveis e depois de algumas que jamais tinham sido imaginadas antes.

O “apoio do Estado” a Anatoly parece ter começado desde o início de sua carreira. Depois o “trem da alegria” só acelerou. Ele obteve permissão para se mudar com a família para Moscou – permissão não concedida sem um bom motivo na União Soviética. Vamos recapitular os simples fatos do ciclo de três anos de 1972-1975, que o levou ao título por forfeit [falta]:

1. Anatoly qualificou-se no Zonal soviético.
2. Disputou no Interzonal soviético de 1973 em Leningrado, empatando invicto em primeiro lugar com Victor Korchnoi.
3. Disputou três matches de Candidatos, derrotando Polugaevsky pela primeira vez em sua cidade natal de Moscou.
4. Derrotou Spassky em Leningrado na Semifinal.
5. Derrotou Korchnoi na Final de Candidatos de 1974 em Moscou por 3 a 2, com 19 empates. A cidade natal de Korchnoi era Leningrado, e Karpov morava em Moscou. O match foi em Moscou.
6. Por fim, obtendo o título em 1975 por muita desistência graças às maquinações da Federação de Xadrez da URSS na Assembléia Geral da FIDE. A USCF estava no outro lado das maquinações, apoiando o Campeão Mundial Bobby Fischer.

Em parte porque o Interzonal de que participou foi realizado em Leningrado e porque seus adversários nos torneios de Candidatos (Polugaevsky, Spassky e Korchnoi) eram todos enxadristas soviéticos (na época), aconteceu que Anatoly Karpov tornou-se Campeão Mundial sem jogar uma única partida fora da União Soviética; ou, melhor dizendo: ele jogou todas as suas partidas na Rússia, e a maioria de suas partidas, incluindo a final de Candidatos, foi disputada em sua cidade, Moscou. Como eufemisticamente diriam os britânicos, “isso ajuda”.

Ainda posso ver Bent Larsen queixando-se de que, para uma fase do prolongado ciclo de três anos, o Interzonal em que ele seria obrigado a competir seria disputado dentro da URSS. Fico pensando em como Larsen se sairia se todo o ciclo de três anos tivesse ocorrido em Copenhague.

Serei absolutamente claro: não estou fazendo acusações de fraude ou trapaça. Na época, Karpov já estava entre os dez melhores do mundo. Estou apenas dizendo que seus esforços contaram com o total amparo e apoio da Federação Soviética de Xadrez e sem esse apoio ele poderia não ter sido bem-sucedido.

Depois que Karpov foi declarado Campeão Mundial da FIDE e a questão do empate em 9 a 9 de Fischer estava sendo debatida, a questão era: de que vantagem, se houver alguma, o Campeão deveria usufruir? As autoridades da FIDE decidiram dar ao Campeão Karpov uma imensa vantagem: uma cláusula de revanche. Caso Karpov perdesse um match pelo título, ele teria direito a uma revanche – precisamente o direito que Botvinnik exerceu com êxito antes de ser tirado dele por ser uma vantagem muito grande. O direito a uma revanche era simplesmente uma imensa vantagem para o Campeão Mundial e certamente muito maior do que qualquer coisa que Bobby tivesse pedido. Da perspectiva de Karpov, isso era muito natural. Por que ele iria se opor? Realmente, por quê? Com sua ascensão ao trono do xadrez, Anatoly Karpov tornou-se uma figura de liderança nos círculos do esporte soviético e da cultura soviética. Ele trouxera de volta a coroa que tinha sido levada pelo arrivista Bobby Fischer. Foi premiado com a Ordem de Lênin e duas vezes eleito Esportista Soviético do Ano – uma realização digna de consideração em um país que produziu Campeões Mundiais em praticamente todos os esportes. Na época do match de 1978 com Victor Korchnoi, e especialmente no de 1981, a influência de Karpov na URSS era muito forte. Seu adversário, um desertor, oficialmente um criminoso do Estado soviético aguardando julgamento, era o perfeito contraste para Anatoly. Ele empunhava a bandeira, preservava a honra da URSS e mantinha a coroa. Os Comissários tinham que ficar absolutamente encantados com Anatoly Karpov – ele era o perfeito “herói nacional da pátria.”

Karpov nunca jogou contra Fischer, mas três vezes derrotou o demonizado Victor Korchnoi, de maneira justa e honesta. Ou não? Em 1976, Korchnoi desertou da União Soviética enquanto disputava um torneio em Amsterdã. Deixou para trás uma esposa e um filho na União Soviética. Ele implorou ao Estado soviético que permitisse que seus familiares saíssem e se unissem a ele no Ocidente, mas sua solicitação foi rejeitada muitas vezes. Em entrevistas à imprensa, Korchnoi explicou que sua família estava sendo deliberadamente mantida como “refém” pelo Estado soviético e que, na véspera de suas partidas contra Karpov, seu filho Igor foi mandado para um campo de prisioneiros, como de fato aconteceu em 1981.

É aqui que as coisas se tornam especialmente interessantes: Korchnoi alegou que Karpov, se quisesse, poderia intervir e pedir ao Estado que libertasse seus familiares. Foi uma acusação que considerei muito convincente. O simples respeito por seu adversário deveria exigir que Karpov fizesse este pedido e permitir que a família se reencontrasse e pôr um fim a uma acusação muito forte e emotiva, ao mesmo tempo garantindo que a importante questão da supremacia do xadrez soviético fosse resolvida no tabuleiro.

Foi somente anos depois de Korchnoi ter deixado de ser uma ameaça ao título do Campeonato Mundial que sua esposa Bella e seu filho Igor tiveram permissão para sair da União Soviética e viver no Ocidente. Victor acabou se divorciando e casando novamente. Que eu saiba, Karpov jamais intercedeu em nome dos familiares de Victor.

Karpov era um enxadrista formidável, mas ele não adquiriu sua força sem ajuda. A União Soviética era a maior usina de xadrez do planeta. Os melhores enxadristas do mundo vieram da URSS e Karpov passou sua vida inteira competindo com eles. O Estado patrocinava-o, seus treinadores e as sessões de treinamento, supria-o de livros e materiais de xadrez e garantia que ele fosse um profissional de xadrez em tempo integral e bem cuidado. Ele podia dedicar seu tempo e energia ao estudo e jogo e era simplesmente inevitável que seu talento lhe permitisse emergir como um forte Grande Mestre.

Em diversas ocasiões, li palavras de pessoas esclarecidas dizendo que Bobby Fischer foi “o primeiro profissional do xadrez” do mundo, como todos temos uma “dívida” com ele por seu “profissionalismo” e como ele preparou o caminho para que outros também se tornassem profissionais. Bobby tinha uma postura profissional, mas é risível considerá-lo o primeiro profissional do xadrez. A URSS tinha enxadristas profissionais além de atletas profissionais muito antes de Bobby ter aprendido uma abertura. Os Grandes Mestres e Campeões soviéticos tinham apartamentos, rendas, ordenados, carros, casas de verão, férias, treinadores, técnicos e pensões por décadas antes de Bobby. Esses enxadristas dedicavam suas vidas ao seu ofício. Eles eram o epítome dos profissionais.

O que Bobby fez foi popularizar o xadrez no Ocidente e possibilitar que seus partidários no Ocidente vivessem modestamente disso. Os profissionais orientais andavam muito bem muito antes disso, com rendas muito superiores à do “homem comum” na rua.

Só para dar um exemplo, meu amigo e Mestre Internacional Nikolay Minev formou--se em Medicina na Bulgária. Depois de exercer a medicina por alguns anos, ele mudou de profissão. Tornou-se editor da revista Shakhmatna Misl da Federação Búlgara de Xadrez, além de ter um cargo fixo nos campeonatos búlgaros e na equipe nacional. Por quê? Nikolay ganhava três vezes mais como enxadrista do que como médico e, além disso, trabalhava menos horas. Como enxadrista, Nikolay tinha permissão para viajar para o exterior, o que era simplesmente impossível como médico. Os profissionais de xadrez viviam muito bem nos países comunistas e, quando seus melhores dias de jogo acabavam, podiam facilmente passar aos postos de técnicos e treinadores recebendo assim apartamentos, salários e pensões. Não estou dizendo que viver nos países comunistas era fácil; mas viver em um país comunista era muito mais fácil se você fosse um Grande Mestre. Anatoly Karpov era um enxadrista profissional e devia sua subsistência ao Estado Soviético. À medida que foi acumulando sucessos, seus privilégios também aumentaram. Ele dispunha dos melhores treinadores, dos melhores técnicos e das melhores bibliotecas de xadrez que a URSS podia oferecer. Uma lista muito longa de enxadristas, incluindo Mikhail Botvinnik, Igor Zaitsev, Lev Polugaevsky, Efim Geller, Semyon Furman, Mikhail Podgaets e Mischa Tal, trabalhou para e em nome de Anatoly Karpov. A nata dos treinadores soviéticos ajudou Anatoly a afiar seu jogo. Se Bobby contava “só consigo mesmo” em seu treinamento e preparação, Anatoly era o extremo oposto e contava com o trabalho de muitos em seu auxílio. Mais uma vez, estamos falando sobre o melhor dos melhores – no mundo inteiro. Anatoly estava no ápice de uma vasta pirâmide onde todas as coisas boas fluíam da base para o topo. Como o diretor de cinema Mel Brooks diria, “é bom ser rei!” Como resultado de todo o treinamento rigoroso, auxílio de fortes Grandes Mestres e estudiosos de aberturas e competição com e contra os melhores enxadristas do mundo diariamente, não é de surpreender que Anatoly tenha se tornado um dos melhores enxadristas do mundo. E, sempre que possível, as autoridades soviéticas não deixavam nada para o acaso. De seu ponto de vista, fazia todo o sentido que “seu” Campeão Mundial tivesse o melhor de tudo. Outra paráfrase vem à cabeça, desta vez de George Orwell: “Algumas igualdades de condições são mais iguais do que outras...” Com todas essas vantagens, poderia haver outro desfecho? Mais um detalhe merece ser mencionado: Anatoly era incrivelmente talentoso. Isso também ajuda, é claro.


Karpov como enxadrista

O que quero dizer quando digo que Anatoly era “talentoso”? Em minha concepção, Anatoly tinha talentos que poucos possuíam. Ele tinha uma grande memória (todos os grandes enxadristas têm); tinha fantásticas habilidades de cálculo, identificando variantes prolongadas com clareza, calculando com precisão e julgando as posições resultantes muito bem. Além dessas habilidades que podem ser ensinadas, ele tinha algo inato: uma capacidade de harmonizar suas peças que poucos jamais possuíram. Anatoly jogou centenas e centenas de grandes e bons lances, cometeu pouquíssimos erros e ainda menos erros graves e, durante todo o tempo em que fazia seus lances, também ia tecendo uma alegre composição harmônica baseada em seu maravilhoso talento intuitivo. Suas partidas eram a um só tempo uma mistura poderosa de arte, lógica e cálculo. Esta “coesão de forças” era quase instintiva para ele. Era uma habilidade que ninguém jamais foi capaz de imitar. Karpov não era perfeito; ele tinha estilo. Um estilo que ninguém jamais viu antes nem depois. Derrotar Karpov era uma tarefa quase impossível. Por quê? Bem, a profundidade de seu conhecimento de aberturas era impressionante. Sua defesas e aberturas foram aprimoradas em profundidades nunca igualadas. Para vencer, você precisava obter uma vantagem na abertura, e seus treinadores trabalhavam noite e dia para garantir que isso não acontecesse.

Caso você conseguisse uma vantagem na abertura, então você teria que nutri-la durante o meio-jogo. De alguma forma, você teria que jogar melhor do que um dos enxadristas mais talentosos e diligentes que já se viu.

Depois de ter sido capaz de manter sua vantagem até um adiamento, você teria outra desvantagem completamente diferente: a formidável equipe de treinadores e assistentes de Karpov analisava a posição com uma profundidade nunca igualada. Essa equipe de treinadores de elite só ajudava a aperfeiçoar o esplêndido final de jogo de Anatoly. Possivelmente, ele foi o melhor jogador de finais desde Vassily Smyslov, talvez o melhor jogador de finais de todos os tempos.

Para recapitular, como se costumava dizer sobre Alekhine, para derrotar Anatoly era preciso vencer três vezes para ganhar uma partida: na abertura, no meio-jogo e no adiamento/final. Além disso, você precisava derrotar não apenas Anatoly, mas, com efeito, seu exército de ajudantes. As derrotas de Karpov em algum ano entre 1975 e 1985 geralmente poderiam ser contadas com os dedos de uma mão. E ele era um enxadrista muito ativo.

Anatoly tinha dois amargos rivais, além da sombra de Fischer: Victor Korchnoi e Garry Kasparov. Enquanto Mohammed Ali tinha seu Joe Frazier, Anatoly tinha dois inimigos mortais e as disputas que eles produziam uns contra os outros. No fogo de seus três matches com Victor Korchnoi, pareceu-me que Karpov se aperfeiçoou, ao passo que, nos cinco matches pelo Campeonato Mundial sem precedentes entre Karpov e Kasparov, pareceu-me que Kasparov se aperfeiçoou.


Encontrando Karpov

Não é de surpreender que meu primeiro encontro com Anatoly Karpov esteja inesquecivelmente aliado a Garry Kasparov. Retornamos à Olimpíada de 1980 em Malta. Como mencionado, as equipes americanas estavam alojadas em um complexo de apartamentos fora de Valletta; as equipes soviéticas, em contraste, estavam no melhor hotel de Valleta, do qual era fácil ir a pé até o local de jogos. Fora das rodadas de jogo, quase não víamos as equipes soviéticas. Lembro-me da ocasião que gravou em minha mente muito bem a impressão que tive destes campeões: eu estava observando diretamente a equipe soviética masculina; eles estavam jogando contra a Bulgária, e os jogadores búlgaros estavam de costas para mim. Naquela rodada, os Estados Unidos jogavam contra a Hungria na “Mesa 1”. Eu podia observar as mesas dos jogadores desde Karpov no primeiro tabuleiro, jogando contra Evgeny Ermenkov ligeiramente à minha direita, até Garry Kasparov no quarto tabuleiro, jogando contra Krum Georgiev um pouco mais à esquerda. Eu tinha visão perfeita de tudo que estava acontecendo.

Eu sabia que Garry tinha cometido um erro grave na abertura/início do meio-jogo e estava em péssima posição. (Eu já tinha andado em volta das mesas antes observando as partidas em andamento.) Anatoly deu seu lance no primeiro tabuleiro, levantou-se, atravessou para o “lado búlgaro” da mesa e começou a percorrer os tabuleiros, verificando as partidas até chegar à mesa  junto à parede. Parou no tabuleiro de Kasparov e começou a rir da difícil situação de Garry. Garry ficou furioso. Enrubesceu e disse rispidamente algo em russo acenando com a mão, “convidando” Anatoly a sair. Foi chocante, falando-se em espírito de equipe. Anatoly entendeu o recado e saiu arrastando os pés para pegar uma xícara de café.

Até aqui as coisas tinham sido apenas “divertidas”, mas agora elas se tornam realmente sublimes. Garry decidiu-se por seu lance, fez um movimento drástico com a mão e a peça (no sentido físico), esmurrou o relógio, levantou-se e foi diretamente olhar a posição no primeiro tabuleiro. Estudou-a por alguns minutos e depois aproximou-se de Evgeny e sussurrou algo em seu ouvido.

Eu fiquei excitado. Esperei Garry sair e fui até Evgeny perguntar-lhe o que havia acontecido. Evgeny me contou que Garry dissera-lhe em russo: “Você está melhor. Em breve Karpov irá oferecer um empate. Não aceite!” Era muito engraçado. De passagem, devo mencionar que somente um regime comunista totalitário conseguiria manter estes dois homens na mesma equipe. Fala-rei mais sobre isso nos capítulos a seguir. A propósito, Garry estava absolutamente certo, e alguns lances depois Anatoly ofereceu mesmo um empate. Contudo, Evgeny não seguiu o conselho de Garry e aceitou a oferta de empate.

Encontrei tanto Garry quanto Anatoly oficialmente durante a 11 a rodada do match de União Soviética contra Estados Unidos, quando enfrentei Mischa Tal. Houve vários apertos de mão, e minha recordação era de que tanto Anatoly quanto Garry se comportaram (ao menos naquela ocasião) muito profissionalmente, pelo menos comigo. Meu companheiro de equipe, Lev Alburt, jogando no primeiro tabuleiro, sentiu de outra forma. Lev tinha desertado da União Soviética e vinha se “fortalecendo” para jogar contra Karpov no primeiro tabuleiro. Estivera ansioso para apertar a mão de Karpov – seria seu modo de dizer: “Veja. Estou aqui. Eu desertei, mas ainda estou vivo.” Karpov não aceitou. Quando Lev estendeu a mão para cumprimentá-lo, Karpov deixou claro que não haveria gestos de cordialidade e recusou a mão. Lev ficou totalmente murcho e jogou uma péssima partida. Talvez a pior de sua carreira. Fiquei decepcionado com Karpov por causa deste incidente. Muitos anos depois eu o questionei sobre isso. “Por que nem apertar a mão de Lev?”, perguntei inocentemente. Sua explicação revelou a quantos mundos de distância vivíamos: “Yasser, aquilo foi na época da União Soviética. Não se esqueça de que estávamos sendo constantemente vigiados. Tudo que fazíamos e dizíamos era monitorado ou ‘registrado’ de alguma forma. Lev era um desertor. De acordo com o Estado, oficialmente um criminoso. Se eu tivesse sido visto apertando sua mão, isso teria sido relatado e eu enfrentaria um inquérito e teria que me explicar. ‘Por que você apertou a mão de um criminoso de Estado?’, perguntariam. Seria uma mancha na minha ficha.”

Vista daquele ângulo, compreendi a decisão de Anatoly. Eu não iria querer uma mancha na minha ficha na CIA. Mas eu tenho uma ficha na CIA? A vez seguinte em que encontrei Anatoly foi mais confusa. Lembro que eu estava na Espanha, talvez de férias, e que fiquei entediado e decidi por impulso dar uma chegada no torneio de Linares de 1981. Como Larry Christiansen e Lubomir Kavalek estavam participando, eu tinha um motivo para vadiar por uns dias. Enquanto estava lá, eu ajudava Larry um pouco a se preparar para suas partidas e também dizia palavras de incentivo antes de cada rodada. O que quer que tenhamos feito não foi mau. Larry empatou com Anatoly em primeiro lugar. O incidente do qual me recordo (e realmente penso que ele aconteceu em Linares durante esta visita) é que estávamos numa partida de bridge com apostas muito pequenas em pesetas espanholas, quase insuficientes para pagar uma rodada de bebidas. Larry era meu parceiro e estávamos jogando com Kavalek e Karpov. Eu era de longe o pior jogador da mesa e Larry tinha que carregar a dupla, mas não estava sendo bem-sucedido o suficiente, infelizmente, pois eu e ele estávamos sendo arrasados. (Ou seja, provavelmente estávamos devendo duas rodadas de bebida.) Em um determinado momento, Lubosh foi até o bar para pegar uma rodada de bebidas enquanto Anatoly foi ao banheiro, de modo que eu e Larry ficamos sozinhos. “Vamos mexer no baralho,” sussurrou Larry para mim. “Que?” “Vamos arrumar a próxima mão de cartas. Quando eles apostarem, você dobra, certo?” Bom, vamos dizer que o diabo ficou por cima desta vez, e eu concordei. Num instante Larry tinha arrumado o baralho. Vamos ser claros, este não foi um momento de Ian Fleming, em que James Bond faz a troca por um baralho falso. Larry fez a coisa quase instantaneamente. Ele tinha prática? Quando Anatoly começou a caminhar de volta para a mesa, ele pôde ver que eu fiz um show ao “cortar” as cartas como ardil de que tudo estava direito. Lubosh voltou com as bebidas e ficou contente ao descobrir que uma mão muito boa aguardava sua chegada. Entre si, eu acho que eles tinham 34 pontos e começaram a “jogar” ligeirinho. Eu, é claro, dobrei – sem absolutamente nenhum motivo. As ofertas tinham sido totalmente unilaterais. Isso provocou um “redobre”, que causou muitas risadas, pois nossos adversários começaram a reclamar que aquilo era um insulto... No fim, Anatoly jogou o contrato, e Lubosh ficou feliz à beça de mostrar suas figuras. Anatoly começou com as palavras “Ai-ai-ai.” Compreendeu imediatamente que suas cartas duplicavam as figuras e que ele seria sem dúvida sortudo de fazer o contrato. Bom, quis a sorte que todas as finesses deram contra ele. Anatoly, que Deus o abençoe, praguejou a cada vaza perdida. Eu definitivamente tive a impressão de que o russo é uma língua rica em que se pode praguejar muito bem. Foi uma curtição e tanto.

Até hoje não sei como eu e Larry nos seguramos e não explodimos em risadas convulsivas. Lubosh deu a volta na mesa para ver o dilema de Anatoly e disse algo como “Ah, meu Deus. Vou pegar outra rodada...” e saiu. Bom, Anatoly desceu feio, algo como quatro vazas, vulneráveis, dobradas e redobradas. Quando Lubosh voltou, Anatoly começou uma explicação tortuosa do quanto suas cartas estavam horríveis. Eu e Larry ficamos empacados – as queixas eram tão vociferantes que não conseguimos confessar. Em vez disso, continuamos jogando calmamente como bons cristãos. Suspeito que aquela única mão levou-nos a equilibrar o placar... Essa história tem uma continuação, mas vamos deixar isso em suspense por enquanto.

Uma outra aventura daquele torneio em Linares: em um dos dias livres, os enxadristas foram convidados pelos organizadores a lutar contra touros. Eu e Larry aceitamos, e assim fomos até o campo de touradas. Quero ser extremamente claro aqui: os “touros” contra os quais tínhamos que lutar eram bezerros. Falo de animais de dois anos. Mesmo nesta idade, eles são animais grandes e muito rápidos e travessos. Não direi que fiquei “apavorado” de enfrentá-los, mas meus sinais de perigo estavam em alerta máximo e com frequência eu me virava e corria para trás de uma laje de concreto para me proteger. Nas fotos que tenho, Larry pareceu ter provado ser um toureiro melhor do que eu. Ele certamente tinha estilo. Uma coisa que posso definitivamente dizer sobre a experiência toda, qualquer que seja a opinião do leitor sobre as touradas, é que os toureiros que se colocam em frente a um touro adulto precisam ser absolutamente destemidos. Eu jamais trocaria de profissão por um único momento sequer.

A vez seguinte em que encontrei Anatoly foi no match do Campeonato Mundial em 1981 com Victor Korchnoi. Lembro-me de estar no Hotel Palace em Merano quando Petra nos informou: “Os soviéticos chegaram.” Eles tinham chegado em um grande ônibus de viagem do aeroporto de Milão. O que mais a impressionara? “Contei 35 malas”. Era realmente um número impressionante. Quantas pessoas? Por que tanta bagagem? E sim, Karpov havia chegado em um carro especial também. Nas palavras de Johnny Walker, um mestre de xadrez de Seattle, quando um patrocinador calculava um prêmio em dinheiro, “isso é o que eu chamo de patrocinador!” Em alguns aspectos, a notícia fez nossa pequena equipe de ajudantes de Korchnoi pensar. Estávamos enfrentando uma grande equipe com muitas pessoas.

Minha primeira partida contra Anatoly Karpov aconteceu em 1982 na primeira rodada de um torneio realizado no famoso balneário de Mar del Plata, Argentina. Conheci sua primeira esposa lá também. Em geral, Anatoly estava muito calmo em Mar del Plata. Ele não jogou bem, possivelmente seu pior torneio em anos, e eu também não o vi muito; meus olhos estavam focados nas praias. Todo mundo tem histórias de “um (peixe) muito, muito grande que escapou”. Bem, esta partida é uma dessas histórias. Na verdade, é a pior história de minha carreira de algo grande que escapou. Até hoje, lembrar desta partida dói. Dói como a dor de uma antiga cicatriz feia. Só posso fazer uma careta e desviar os olhos. Ainda não acredito que perdi esta partida; Anatoly estava tão perdido! Publiquei comentários para esta partida na The Weekly, uma revista local de Seattle (edição de 10-17 de março de 1982, página 31), em um artigo intitulado, The Assault on Mt. Karpov (O Ataque ao Monte Karpov).



Fonte: “Duelos de Xadrez Minhas Partidas com os Campeões Mundiais” Yasser Seirawan
https://pt.scribd.com/doc/316900478/YASSER-SEIRAWAN-Duelos-de-Xadrez-Minhas-Partidas-com-os-Campeoes-Mundiais-pdf

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