sábado, 6 de abril de 2013

Misérias e Glórias do Xadrez - Final

 Misérias e Glórias do Xadrez - Final
Carlos Batista Lopes

Enquanto promovia, com uma cobertura maciça da mídia, o rompimento de qualquer limite ou regra no xadrez mundial - e, não tenhamos dúvida, a falta de limites e regras não favorece a maior democratização ou igualdade, mas à submissão a quem tem mais poder ou dinheiro - Kasparov continuava posando de libertário: “Eu não preciso do reconhecimento de uma organização burocrática como a FIDE. Sou o melhor do mundo e prefiro demonstrá-lo nos torneios e com o reconhecimento das pessoas”.


Um “Luis XIV de pacotilla”, classificou José Luis Rescalvo, em seu artigo “História de uma infâmia”. Com efeito.

Mas, provavelmente, é pior. Em nome de ser “o melhor do mundo”, ele não pretendia, como Luís XIV, ser a encarnação da organização coletiva. Pelo contrário, pretendia estar acima de qualquer organização coletiva - pois não era dos entraves burocráticos da FIDE que estava falando, mas da própria FIDE como instituição. Essa linguagem, muitos não terão dificuldade em reconhecer: a de considerar “burocrático” não o que realmente é, mas a coletividade em si mesma, porque ela impõe limites, antes de tudo limites morais. Certamente, a coletividade só deixará de ser “burocrática” quando estiver submetida ao “melhor”... Em suma, a linguagem mais chula do fascismo.

Valery Salov tem razão ao dizer que “Kasparov é um embusteiro em série”. Evidentemente, Salov estava falando em termos políticos. No entanto, a única credencial de Kasparov como político é sua carreira no xadrez. Portanto, estamos diante de uma questão enxadrística importante: ele tem sido promovido insistentemente a melhor jogador da história, porque, segundo argumentam seus partidários, nenhum teria ficado tanto tempo acima de todos os outros. O fato de que nenhum outro, desde Alekhine, tenha se colocado acima de qualquer regra, não parece aturdir esses cavalheiros. 




Nem, muito menos, o fato de que afastou possíveis desafiantes e desafetos declarados, usando o poder econômico dos patrocinadores. E, por último, nem o fato completamente inédito de que no lugar de onde poderia vir contestação, os países que antes formavam a URSS, a estrutura do xadrez, principalmente a que formava os jogadores, pela primeira vez desde 1945 estava em frangalhos ou deixara de existir. Some-se a isso o apoio de uma tremenda cobertura de mídia, dinheiro a rodo e oponentes intimidados – e temos aqui as condições em que Kasparov se impôs.


Mas, examinemos o argumento sem outras considerações. Veremos que também não é verdadeiro: Steinitz e Lasker tiveram predominância por mais tempo que Kasparov. E o fato de Capablanca ter sido campeão mundial durante apenas seis anos não torna Kasparov melhor do que Capablanca. Ou melhor do que Fischer, campeão durante três anos.

Mas é aí nesse instante que aparece o outro argumento dos kasparovistas: o rating ELO. Vejamos o que significa.

ELO

Em 1970, a FIDE resolveu adotar, para medir a força relativa dos jogadores, o sistema usado desde 10 anos antes pela Federação dos EUA (USFC), denominado ELO devido ao autor do modelo matemático, Arpad Elo.

É fato que a FIDE precisava de um método menos subjetivo de estabelecer ratings (isto é, números que expressam a força relativa dos jogadores) do que o adotado até então - e optou pela proposta de Elo.



Gligoric, que esteve presente à reunião da FIDE que adotou o sistema, afirmou, em entrevista ao GM Alexander Baburin, que o próprio Arpad Elo, nessa reunião, alertou sobre a necessidade de correções futuras, pois, por sua fórmula, os ratings tendiam à inflação. Hoje, inclusive, a maior parte das organizações que utilizam o sistema já incluiu correções para evitar distorções maiores.

Em poucas palavras: como a base do modelo é estatística, o significado do rating muda de acordo com a base estatística - o que equivale a dizer: de acordo com a época. Assim, o próprio Elo, em seu livro “The Rating of Chessplayers, Past and Present”, de 1978, escolheu os cinco melhores anos das carreiras dos jogadores como base para estabelecer ratings. Poderia ter escolhido outra base - e o resultado seria diferente.

Reparemos que, mesmo considerando um único critério, isso, na prática, não evita algumas deformações importantes: com a mesma base estatística, Elo concede o rating 2.690 tanto para Alekhine quanto para Smyslov quanto para Morphy. No entanto, o último, Paul Morphy, um jogador norte-americano de origem hispânica do século XIX, simplesmente arrasou todos os seus contendores, nos EUA e na Europa, entre 1849 e 1869, vencendo 83% das partidas que disputou em competições, sem absolutamente ninguém que pudesse chegar perto, o que não é o caso nem de Alekhine nem de Smyslov.

Pelo menos, o professor Elo tem algum senso do ridículo. Usando uma base diferente, outro autor calculou uma lista dos mais altos ratings já atingidos por jogadores de hoje e de ontem, onde Mikhail Tahl está em 38º lugar, Lasker em 27º, Botvinnik em 26º e Capablanca em 27º. O primeiro, claro, é Kasparov. Mas, o leitor já ouviu falar, por exemplo, em Dmitry Jakovenko? Trata-se de um promissor jovem de 24 anos, mas não há nada que tenha feito para que esteja quatro lugares acima de Capablanca (!), cinco acima de Botvinnik (!!), seis acima de Lasker (!!!) e 17 lugares acima de Tahl!!!! (O polonês Przemek Jahr é mais modesto: sua lista omite Capablanca, Lasker e Botvinnik; Tahl, no entanto, está em 27º – atrás até mesmo de Kasimdzhanov e outros que, convenhamos, estão muito longe de ser grandes jogadores no sentido em que Tahl foi grande).

Não continuaremos mais a mostrar as distorções do cálculo de rating. Resta apenas observar que, com o comercialismo desenfreado, instituiu-se uma verdadeira ditadura do rating. É impressionante a obsessão de alguns com esse número. A origem dessa obsessão é evidente: cada vez mais os torneios são organizados em função dele. Alguém poderia dizer que, antes do sistema ELO, já eram. Sem dúvida é necessária uma forma de fazer com que os enfrentamentos sejam entre jogadores de força semelhante. No entanto, algumas das melhores coisas acontecidas em xadrez estiveram em partidas entre jogadores presumivelmente de força diferente. Se o sistema ELO existisse na época de Capablanca, como ele poderia, em 1911, ter jogado em San Sebastián, um torneio onde passou de desconhecido para vencedor em algumas semanas? No entanto, o problema não está essencialmente no sistema ELO, mas no modo como é usado - e manipulado. No momento, a situação é tal que até entre os Grandes Mestres – cujos critérios para a obtenção do título foram relaxados - existem os de primeira e os segunda categoria (ou, talvez, de primeira, segunda e terceira categorias...), dependendo do rating. O que não ajuda nem um pouco a enriquecer o desenvolvimento do jogo.

As conseqüências práticas – que, no final das contas, é o que importa - foram muito bem resumidas pelo GM armênio Serguei Movsesian, um dos finalistas do mundial de 1999, em carta aberta a Kasparov, respondendo à tentativa de enxovalhamento deste a essa disputa, organizada pela FIDE em Las Vegas. Por isso, transcrevemos alguns trechos:

“A questão não é: 'por que jogam sempre os mesmos em tais torneios?', mas, 'por que devem considerar-se a elite do xadrez, quais os critérios que dizem que eles são melhores que os demais mortais?'. Se nos basearmos nos ratings, então esses jogadores sem dúvida têm vantagem, porque ao jogar continuamente em torneios de alta categoria, sem o risco de perder pontos, redistribuem-nos entre si (....), enquanto os jogadores 'mortais' estão lutando por subir seus ratings, como é obrigação dos verdadeiros desportistas. Na realidade, você [Kasparov] e seus fornecedores de pontos abusam das imperfeições do sistema Elo (....). Por certo que o sistema de torneios com uma composição permanente de participantes já tem seguidores de 'êxito', [mas] se nos basearmos na força de jogo, não creio realmente que os componentes da 'élite' sejam melhores que os 'mortais' (....). Creio que você está condenado a proteger a seus favoritos, que pensam que você é Deus, sem os quais estaria obrigado a jogar com os 'plebeus'.

“É divertido que você compare os acontecimentos enxadrísticos com o tênis: 'Não posso recordar um torneio do Grand Slam sem a participação dos números 1, 2, 3 y 4 do ranking oficial, além do vencedor da edição anterior'. Mas você se 'esquece' imediatamente de dizer o mais importante: em todos os torneios de tênis os jogadores da 'élite' começam sua participação na segunda eliminatória e lutam pela vitória com os jogadores 'que andam a pé'. (....) Mas o que temos no xadrez? Seus torneios de 'élite', com uma composição permanente de participantes, fiéis súditos de Sua Majestade”.

SOFTWARE

Voltando ao aspecto enxadrístico, se compararmos a contribuição de Kasparov com a de Botvinnik, Petrosian ou até mesmo Karpov, não é difícil concluir que seu predomínio deveu-se a outros fatores que não a profundidade estratégica. Este aspecto essencial do jogo ele absorveu bem, de Botvinnik e outros. Mas nunca se notabilizou por desenvolvê-lo.

Ele foi o primeiro jogador, em nível magistral (ou seja, em nível de mestre e grande mestre), a se beneficiar do uso de computadores. Numa de suas entrevistas, diz ele que tinha armazenadas em seu computador 4 mil variantes. Se é verdade ou se era uma fanfarronada, não sabemos. Mas é perfeitamente possível. Junto com uma memória digna de um idiot savant, isso, pelo menos no começo de sua carreira, não foi pouca vantagem - Karpov, por exemplo, até hoje parece pouco adaptado aos computadores.

Mas o significado disso está, antes de tudo, no aspecto tático, o aspecto em que a maioria dos softwares de xadrez consegue bom desempenho. E, realmente, Kasparov, como Alekhine, foi antes de tudo um tático – o que não quer dizer, evidentemente, que não conhecesse estratégia (apesar do que já dissemos acima, essa ressalva é necessária em razão dos kasparovistas na mídia estarem sempre dispostos a usar um mal entendido - portanto, não venham argumentar que nós dissemos que se trata de um ignorante em estratégia, porque não foi isso o que dissemos). O match de 1995 contra Anand - este um jogador mais estratégico, “posicional” - é bem característico do que estamos dizendo.

Porém, o mais importante é que, declarando-se campeão mundial por fora da FIDE, isto é, acima de qualquer regulamentação, Kasparov escolhia seus oponentes. Assim, em 1998, com sua associação algo no ridículo, e sem que houvesse regra alguma para apontar o desafiante ao seu suposto título, ele quis organizar um match entre Anand e o então jovem Vladimir Kramnik. Qual o critério? Como ficou evidente depois, o critério era a vontade dele: Anand, ele já havia derrotado uma vez e Kramnik havia sido seu “segundo”. Portanto, devia achar que enfrentar o vencedor desse match era o menor risco.

No entanto, Anand, que tinha um contrato com a FIDE, recusou. Acertou-se, então, um match entre Kramnik e Alexei Shirov, na época em grande forma. O vencedor enfrentaria Kasparov.

Mas Shirov tinha Valery Salov como treinador. Apesar de ser um jogador excepcional, Salov teve sua carreira encurtada pelas freqüentes recusas dos organizadores de torneios a convidá-lo: esta era uma condição imposta por Kasparov à sua própria participação. No entanto, ele havia sido campeão mundial sub-16 (1980); campeão europeu junior (1984); primeiro lugar (empatado com Alexander Beliavsky) no Campeonato da URSS de 1987; segundo lugar (empatado com Artur Yusupov) no Campeonato da URSS de 1988 (atrás apenas de Karpov e Kasparov, que terminaram empatados em primeiro lugar); e duas vezes esteve entre os candidatos a desafiante do campeão mundial (1988 e 1996).

Apesar dessa trajetória, como ele declarou em 2000, numa entrevista coletiva em León, “vetado por Kasparov, não tive um só convite nos últimos três anos aqui na Espanha e praticamente nada em todo o mundo”. Não era uma queixa: “sou muito otimista quanto às perspectivas”, disse ele. 

Mas, aconteceu o que Kasparov não esperava. Shirov derrotou Kramnik. Então, Kasparov recusou-se a cumprir o contrato que o obrigava a enfrentá-lo. Segundo suas palavras, Shirov “não era comercial” e isso dificultava conseguir patrocinadores. Além disso, a empresa de Kasparov e associados jamais pagou a Shirov o prêmio acordado para o match com Kramnik, enquanto que este recebeu a sua parte. Em suma, o match valia, desde que o vencedor fosse quem Kasparov queria... Mas exatamente aí ele se enganou: ao achar que Kramnik seria mais fácil do que Shirov.

Seja como for, esse critério da falta de comercialidade de Shirov nem mesmo necessita de comentários. Imagine-se o que seria de qualquer esporte submetido de forma absoluta a esse critério. No mínimo, a Ana Maria Braga seria campeã olímpica de alguma coisa.

No entanto, Shirov é um daqueles táticos espetaculares - seria difícil achar que um jogador mais sólido, como Kramnik, pudesse ser, nessa época, mais “comercial” do que Shirov. É inevitável chegar à conclusão de que Kasparov queria evitar o confronto com Shirov por outra razão - sabe-se lá o que podia acontecer num match com um jogador tão imprevisível quanto ele... Em suma, o problema era medo de perder, o que não era impossível - o resultado do match com Kramnik demonstrava que não era.

Em meio a uma grita geral - Shirov, antes soviético e letão, naturalizara-se espanhol e era o principal jogador de seu novo país - Kasparov anunciou que “preferia” jogar com Anand do que com o vencedor de Kramnik. Mas Anand respondeu outra vez, e publicamente, que tinha contrato com a FIDE e era “homem de palavra”. Algo que, provavelmente, Kasparov não entendeu. Afinal, oferecia-se um prêmio de US$ 2 milhões, com o vencedor levando 2/3. Que história é essa de palavra?, deve ter pensado.
Depois de dois anos de confusão, em que empresas-fantasmas entravam e saiam de cena, realizou-se o match entre Kasparov e Kramnik - e Kasparov perdeu.

A derrota (não conseguiu vencer nenhuma partida, enquanto Kramnik, um excelente jogador posicional, isto é, estratégico, venceu a 2ª e a 10ª) selou o destino das siglas inventadas por Kasparov. Na verdade, nunca se tratou de um verdadeiro campeonato mundial, mas da promoção dele como herói da reação numa área em que os soviéticos – isto é, para todos os efeitos, os comunistas – tiveram longa hegemonia.

FIDE

Para terminar esta série - que nunca pretendemos fosse tão longa - restam algumas palavras sobre a época posterior à falência do mercantilismo desregrado no xadrez, época que ainda não foi inteiramente superada, mas cujo período mais selvagem e obscurantista já ficou para trás.

Em 1995, com o pires na mão, a FIDE mudou seu presidente. Florencio Campomanes fui substituído por Kirsan Ilyumzhinov, também presidente da República da Kalmykia, um pequeno país às margens do Mar Cáspio, antes parte da URSS e hoje integrante da Federação Russa (os kalmíkios não chegam a 200 mil pessoas - somando-se os cidadãos de outras nacionalidades, principalmente russos, a república tem menos de 300 mil habitantes).

Aqui, mais uma vez, é necessário um cuidado especial para atermo-nos somente aos fatos, pois a propaganda contra Ilyumzhinov é algo fenomenal. O que sabemos de seguro é que ele tornou-se bilionário da mesma forma que os outros bilionários da ex-URSS: apropriando-se do patrimônio público. 

É verdade que em relação às pretensões estrangeiras sobre o petróleo, o gás natural e o carvão, que são abundantes em seu pequeno país, ele tem mantido uma atitude de recusar a sua entrega.

Salov, que, diante da confusão no xadrez mundial, advogou a reunificação em torno da FIDE, ao ser interpelado sobre Ilyumzhinov pelo Mestre Internacional Ricardo Calvo, que acusava o presidente da Kalmykia, entre outras coisas, de mandar assassinar uma jornalista, por sinal, reacionaríssima, deu uma resposta interessante: “O Sr. Yeltsyn, o ex-presidente da Rússia, se encarregou pessoalmente de matar cinco mil civis em outubro de 93, de fuzilar o Parlamento legitimamente eleito, violando todos os princípios democráticos. E o que estavam escrevendo todos os nossos livres e democráticos jornalistas? - que ele era a única garantia da democracia na Rússia, que era algo necessário, que havia sido um mau Parlamento (....). A esse assassino em série estavam apoiando todas as forças 'democráticas' do mundo. (....) Então... Vamos deixar de demagogia (....). O Sr. Ilyumzhinov investiu mais de 20 milhões de dólares no mundo do xadrez. É a única diferença que há entre o Sr. Ilyumzhinov e qualquer outro político russo e, inclusive, diria eu, qualquer outro político americano”.


Que o xadrez mundial esteja dependendo, em boa parte, de Ilyumzhinov, não é a melhor coisa do universo. O próprio Salov, comentarista oficial da FIDE nos matches de candidatos deste ano, em Elista (capital da Kalmykia), recebeu uma censura pública da entidade por entrar em assuntos políticos ao entrevistar, para o boletim do evento, a chinesa Xie Jun, duas vezes campeã mundial feminina. Salov havia comentado que “o Ocidente da Europa e os EUA são países totalitários (...). A imprensa está totalmente controlada”. Xie Jun lembrou que na China “temos só um partido, o comunista”. E Salov: “Nos EUA também só tem um partido, mas com dois nomes diferentes”.

Realmente, era demais para Ilyumzhinov.

Apesar disso, o torneio de San Luís, Argentina, em 2005, do qual o GM búlgaro Veselin Topalov saiu campeão mundial, o match de 2006, em que Kramnik venceu Topalov, e o recente torneio da Cidade do México, do qual Viswanathan Anand saiu campeão, são fatos, como diria alguém antigo, alvissareiros e auspiciosos.

No entanto, a principal esperança do xadrez é a força coletiva dos enxadristas. Não é uma frase vazia: o movimento contra a guerra no Iraque, a que, em massa, os enxadristas aderiram, mostrou que essa força é real. Na época, houve apenas uma exceção: Kasparov, que advogou não somente o bombardeio e a invasão do Iraque por Bush, quanto a extensão da guerra à Síria e ao Irã. Mas isso, leitores, é uma voz do além. Que o diabo se encarregue dele.

E por aqui ficamos, agradecendo a audiência - e a paciência. 

Carlos Batista Lopes

Fonte: http://www.cxv.com.br/html/cronicas/miseriasegloriasfinal.htm


Misérias e Glórias do Xadrez - 17



Misérias e Glórias do Xadrez - 17
Carlos Batista Lopes


Kasparov conseguiu ser preso pela polícia, no sábado, em Moscou. Seu retrato, acenando da janela de um ônibus da polícia, é suficiente. 

Pode acreditar, leitor, e nós temos alguma experiência no assunto: ninguém que é realmente preso - isto é, preso contra a sua vontade - se dá ao luxo desse tipo de salamaleque, até porque o humor nessas horas não é muito propício a essas coisas. Mas, seu único programa eleitoral é posar de perseguido, tal como fazia nos tempos da URSS. Ele acha que isso pode funcionar agora, como funcionou antes. 

A diferença é que, nesse intervalo de tempo, os russos tiveram a experiência do governo Yeltsyn e daquilo que Putin chamou de “ditadura das oligarquias”, isto é, a ditadura dos que se tornaram bilionários ao roubar o patrimônio público construído em 70 anos pelos povos que compunham a URSS. 

Como já dissemos, sua oposição a Putin não é pelos seus defeitos - e não faltaria o que criticar, se sua candidatura fosse séria - mas pelas limitações que o atual presidente da Rússia estabeleceu para o império desses nababos. Obviamente, defender que seu verdadeiro programa é acabar com essas limitações, até Kasparov deve perceber que não rende voto. Daí a exumação da postura de perseguido.





Não foi muito diferente a atitude de Kasparov em 1993. Como não existia mais a URSS, o escolhido como perseguidor foi a FIDE, mais concretamente, o seu presidente, Florencio Campomanes.


Pela primeira vez em 18 anos, Karpov não era um dos contendores no match final para decidir o campeão mundial. Perdera, na semifinal, para o inglês Nigel Short. O ex-campeão, nessa época, já havia entrado naquela que Botvinnik chamou de “idade perigosa” para um grande enxadrista – já tinha mais de 40 anos.

KRYLENKO

Com o fim da URSS, acabara também a escola soviética de xadrez. Maiztegui Casas, no artigo que mencionamos na parte anterior deste artigo, considera-a “o movimento enxadrístico mais importante da história”, no que está certo. Nas suas palavras, “partindo da base de que o destino da revolução era gerar o homem novo, mais solidário, mais culto, mais inteligente e mais livre que o produzido pelo capitalismo (...) o xadrez era o terreno ideal para mostrar a superioridade do comunismo sobre o capitalismo. Por seu caráter eminentemente intelectual, por seu aspecto de luta e confrontação direta e por seus elementos dialéticos, o xadrez se prestava, como nenhuma outra atividade, a servir como teste da formação e desenvolvimento do homem novo e para constatar, passo a passo, seu predomínio sobre os burgueses” (grifos do autor).

Há algumas imprecisões nessa descrição: dificilmente os dirigentes soviéticos, sobretudo os da década de 30, achariam que “o xadrez era o terreno ideal para mostrar a superioridade do comunismo sobre o capitalismo”, o que colocaria o nosso jogo acima, por exemplo, da economia e da cultura... Além disso, Stalin, Molotov, e outros, não andavam procurando um aparelho para medir o “homem novo”. Por isso, não é prudente atribuir a eles a crença de que “o xadrez se prestava, como nenhuma outra atividade, para servir como teste da formação e desenvolvimento do homem novo”. Até porque, voltando ao argumento anterior, não faltavam atividades humanas mais decisivas para a Humanidade.

Porém, Maiztegui Casas atribui essas concepções não a Stalin ou Zhdanov, principais teóricos do PCUS, mas ao então Comissário do Povo para a Justiça, Nikolai Krylenko. É possível, e Krylenko, sabidamente, supervisionou o xadrez soviético até o final de 1937 (ver as menções a ele nas memórias de Botvinnik, “Achieving The Aim”). Mesmo assim, isso necessita de comprovação.

Maiztégui Casas faz algumas considerações sobre a trajetória de Krylenko. Umas fazem parte daquilo que podemos chamar, caridosamente, de “lendas da CIA”. Outras, nem tanto. Portanto, é necessário dizer algo sobre o assunto, com base nos fatos conhecidos.

Sabe-se que Krylenko, julgado como traidor e condenado no final da década de 30, esteve entre os primeiros casos a serem revistos na URSS. É interessante observar que, ao contrário da maioria, isso se deu em 1955, portanto, antes do 20º Congresso do PCUS e do relatório “secreto” de Kruschev (25 de fevereiro de 1956), numa época em que a história anterior ainda não havia se tornado anátema, e em que Molotov, Kaganovitch, Malenkov, e outros que depois foram afastados por Kruschev como “stalinistas”, ainda estavam na direção do partido e do Estado soviético. Sabe-se, também, que esses casos foram revistos após o afastamento de Lavrenti Béria da direção do partido e do ministério do interior, em 1953, e que o ataque inicial a Krylenko partiu de Bagírov, um dos mais chegados amigos de Béria, durante a sessão do Soviet Supremo de janeiro de 1938.

A acusação de Bagírov parece bastante mal fundamentada - mas não é possível um juízo definitivo, pois só conhecemos dela os trechos reproduzidos por Roy Medvedev (cf. a coletânea “Stalinism: Essays in Historical Interpretation”), que dificilmente pode ser considerado uma fonte isenta, ou, mesmo, com alguma confiabilidade ou solidez - seja nas conclusões, seja na reprodução de documentos históricos, seja quanto à coerência.

Por outro lado, Béria somente seria transferido da longínqua Geórgia para Moscou em agosto de 1938, portanto, seis meses depois do discurso de Bagírov e do afastamento de Krylenko - e somente em novembro desse mesmo ano ele substituiria Nikolai Yezhov no Comissariado do Interior (NKVD). 

Aparentemente, é impossível a interpretação de que partiu de Béria o ataque a Krylenko. Qual o seu interesse, em janeiro de 1938, no afastamento de Krylenko? É perfeitamente possível a existência de algum fato que desconhecemos que explique porque Béria queria afastar Krylenko, mas isso seria fazer uma especulação totalmente destituída de base factual. Simplesmente, não há prova disso.

Mas, tudo o que foi dito acima pressupõe como segura a premissa de que Krylenko era inocente. Como essa é, em geral, a premissa dos anticomunistas ao abordar os processos e condenações ocorridos na URSS após 1934, é preciso, pois, acautelar-nos.

Primeiro, porque Krylenko foi réu confesso. E sua trajetória não era a de um homem que confessaria, se não reconhecesse a sua culpa. A história de que ele teria sido torturado não foi provada, assim como não foi em relação aos outros réus dos “processos de Moscou”, e ela tem uma única fonte – um cartapácio denominado “Livro Negro do Comunismo”, que, como o leitor pode julgar pelo título, é uma obra muito isenta. Além disso, a presunção de que a tortura leva o torturado a confessar qualquer coisa, é uma crença muito conveniente aos torturadores, mas nem por isso é verdadeira. Apenas, não é um acaso que os anticomunistas doentios e os torturadores tenham esse credo em comum...

Em segundo lugar, houve, realmente, na época, dirigentes do partido e do Estado que se tornaram culpados de traição. Em 1938, a URSS, sob pressão conjunta da Alemanha, da Inglaterra e da França, além de seus satélites no Leste europeu, estava à beira da guerra - uma guerra que, mesmo na direção do PCUS, muitos achavam que era impossível vencer. Daí, as tentativas, baseadas no medo e na ilusão, de fazer concessões, inclusive territoriais, para evitar a guerra - o que somente seria possível se fossem eliminados os principais dirigentes do partido e do Estado. Como sabemos, essas tentativas não foram bem sucedidas. Mas existiram, e não foram pouco importantes os que se envolveram nelas.

Por último, a “reabilitação” de Krylenko também é insuficiente como prova de sua inocência. Tukhachevsky, vice-comissário da Defesa até 1936, foi também “reabilitado” (é verdade que somente em janeiro de 1957, portanto, depois do 20º Congresso), apesar de todas as provas contra ele, inclusive provenientes de fontes anticomunistas, e da admissão atual de vários autores de que ele realmente tramava um golpe de Estado para barganhar, em seguida, com os alemães (para as fontes mais antigas, ver, p. ex., “Moscow 41”, de Alexander Werth; ou o próprio Churchill, “The Gathering Storm”; e a anotação feita por Goebbels, em seu diário, a respeito dos comentários de Hitler sobre a “oposição” de Tukhachevsky a Stalin).

Embora não tenhamos uma resposta completa para a significação do caso de Krylenko, é necessário levar em consideração os fatos, e não as lendas, ao se referir tanto a ele quanto a outras figuras da época. Botvinnik traça dele um retrato não isento de ambigüidade: “os jogadores ao mesmo tempo tinham medo e gostavam de Krylenko”. Ou: “não participei do campeonato da URSS de 1937 porque estava defendendo a minha tese. (....) Krylenko enviou-me um telegrama ameaçador: 'vou discutir sua conduta no Comitê Central'”, o que parece algo tanto autoritário quanto, simplesmente, bobo. Imagine-se o Comitê Central do PCUS, em 1937, assoberbado por problemas políticos nacionais e internacionais extremamente complexos, dedicar-se a discutir se Botvinnik agiu certo ou errado ao não participar do Campeonato Soviético de Xadrez daquele ano para dedicar-se à sua tese universitária...

Porém, o mais importante é que, embora escrevendo 40 anos depois, Botvinnik não faz comentários sobre o afastamento e posterior condenação de Krylenko, o que, visto que ele foi “reabilitado” em 1955, seria natural esperar. Aliás, considerando a cúpula soviética da época em que escreveu suas memórias, se ele fizesse isso, até seria bem visto. No entanto, a impressão que ele passa é a de que se sentiu aliviado com o afastamento de Krylenko.

CONFUSÃO

Fomos obrigados a essa digressão pelos problemas históricos colocados pelo texto de Maiztegui Casas. Entretanto, isso não lhe retira o mérito de haver percebido que a escola soviética de xadrez era a aplicação, em um campo específico, de uma visão geral de mundo. Obviamente, isso incluía um freio ao comercialismo e tinha no centro a idéia de que jogadores de xadrez não são apenas jogadores de xadrez, mas seres humanos.

Este último aspecto estava implícito quando Botvinnik disse que Fischer era “uma máquina de calcular”. Apesar de Fischer ter sido o jogador ocidental que mais absorveu as pesquisas soviéticas em xadrez, isso não o fazia membro da escola soviética - nada mais estranho a ela do que um sujeito que só jogava xadrez, só pensava em xadrez e somente lia sobre xadrez.

Assim, Botvinnik foi um dos cientistas mais importantes na área elétrica e, depois, na informática. Smyslov era um cantor lírico de méritos. Taimanov era um excepcional pianista. Tahl, apesar de seu quase vício pelo xadrez, um professor de literatura. Talvez o único que dedicou-se somente ao xadrez tenha sido Petrosian, que, devido às circunstâncias da vida, era antes um trabalhador braçal pouco qualificado.

Hoje em dia é mais ou menos habitual que alguns jovens, estilo Magnus Carlsen, abandonem a escola para dedicar-se ao xadrez. Antes de Fischer, até no ocidente isso era inadmissível: ver a sentença da Justiça americana que separou o então menino-prodígio Samuel Reshevsky dos pais, que, em vez de cuidar de sua educação, dedicaram-se a ganhar dinheiro com as exibições do filho. Mas isso, é claro, foi no governo Roosevelt...

A escola soviética de xadrez compreendia também uma estrutura, que tinha por base as instituições dos “pioneiros”. Mas tudo isso deixou de existir com a URSS.

PCA & ETC.

Em 1993, o conflito de Kasparov com a FIDE era basicamente o conflito do mercantilismo sem limites com os freios a ele que ainda existiam - em suma, com o que restava da escola soviética de xadrez. A FIDE, apesar de sua trajetória de curvar-se aos ditames ocidentais da “guerra fria”, ainda conservava algum respeito pela esportividade.

Ao negociar com Alekhine, em 1938, um match pelo título mundial, Botvinnik surpreendeu-se com a desenvoltura do então campeão em questões monetárias. E comentou, sobre si mesmo: “eu não tinha necessidade de dinheiro”. Ou seja, jogar xadrez, para ele, não era um meio de vida, muito menos de enriquecer.

Mais de cinquenta anos depois, Kasparov e Short resolveram passar por cima da FIDE e realizar um match, sob os auspícios do “The Times”, de Londres, pelo título de campeão mundial - e, naturalmente, Short não era páreo para Kasparov.

A associação paralela fundada por Kasparov, a PCA (Professional Chess Association), que sucedeu a GMA e antecedeu o WCC (todas essas siglas rotulando um mesmo conteúdo, apenas com contratos comerciais algo diversos) poderia ser definida por duas características: a) um mercantilismo sem limites - o xadrez em função dos patrocinadores, isto é, do dinheiro; b) uma corte para Kasparov - tanto assim que deixou (ou deixaram) de existir logo que Kasparov perdeu um match organizado por ela: contra Kramnik, em outubro de 2000. Não era para isso que ela existia.








Mas, após 1993, o que se tornou inviável foi a FIDE. Sem a URSS, também ela passou a depender de patrocinadores. Mas estes, a começar pela Intel, preferiram a associação de Kasparov - que, afinal, havia sido fundada para servi-los, em troca de algumas migalhas (e, se o leitor achar exagerado essa palavra, diríamos que, para esses financiadores, o que passaram para a PCA não merece outro nome).

Da mesma forma, a mídia. O leitor que não é um aficionado em xadrez já deve ter ouvido que Kasparov continuou campeão do mundo ao vencer Short em 1993. Mas certamente ignora que o campeão da FIDE, ao vencer Timman, foi, outra vez, Karpov. Que Kasparov venceu o indiano Viswanathan Anand no campeonato seguinte, mas não que Karpov foi outra vez o campeão, ao vencer Kamsky. Nem que, em 1998, o mesmo Karpov venceu o mesmo Anand que havia perdido de Kasparov, pelo título de campeão do mundo.

Em suma, instaurou-se a confusão geral. Jogadores iam da FIDE para a PCA e da PCA para a FIDE, sem que esta mantivesse a mínima autoridade moral sobre o xadrez mundial. No meio dessa confusão, Kasparov ainda arrumou um match pelo título mundial com... um programa de computador, o famoso Deep Blue. Obviamente, não é essa a versão de Kasparov, mas alguém recordou que ele havia escrito: “Usando os modos geralmente aceitos de contar os campeões, Garry Kasparov é o 13º campeão; o único modo de alguém tornar-se o 14º é derrotar o 13º” (Chess Life, 08/1993). Ele não se advertiu de que, por esse desregrado critério, Fischer ainda seria o campeão mundial. Mas, quando Kasparov perdeu para o Deep Blue, num match em 1997, vários saudaram o novo campeão...


Na verdade, os supostos duelos “homem x máquina” são outro capitulo dessa comédia. É evidente que jogar com um computador é jogar com uma criação humana. Portanto, não se justifica tal alarido em torno desses matches, senão como forma de ganhar dinheiro. Além do mais, como observaram Karpov, Susan Polgar e outros, um duelo desse tipo somente seria justo se o programa de computador contasse apenas com seus próprios recursos. No entanto, isso não é verdade: os programas de computador, até hoje, não conseguem jogar bem uma abertura nem um final de jogo. A solução foi dar a ele livros de abertura e de finais (“tablebases”) onde as posições já estão determinadas, além, evidentemente, de um banco de partidas, jogadas por humanos, cada vez maior. Em um jogo onde, além do mais, o tempo é decisivo, isso torna a partida cada vez mais desigual - não para a “máquina” em relação ao “humano”, mas para os humanos que criaram o programa em relação ao jogador humano que o enfrenta sem livro de aberturas, sem livro de finais e sem poder consultar um banco de dados de partidas.


Esse é o aspecto falso mas não fraudulento desses duelos. Porém, há outro: em 2003, quando outro duelo “homem x máquina” foi promovido, com Kasparov recebendo US$ 500 mil e mais uma bolsa de igual magnitude (60% se vencesse, 40% se perdesse), pagos pela Technologies Corporation para promover o seu “Deep Júnior”, aconteceram algumas coisas incríveis.

Na primeira partida, o “Deep Júnior” fez uma tenebrosa 17ª jogada e perdeu a partida. Na terceira, Kasparov resolveu retribuir a gentileza e competir com a máquina em cálculo - o que ele sabia, desde o Deep Blue, que é praticamente impossível. Programas de computador podem ser vencidos porque sua análise da posição não é acurada, mas jamais no cálculo de seqüências de jogadas - afinal, é para calcular coisas semelhantes que os computadores e seus programas existem.


Na 5ª partida, o computador simplesmente sacrificou uma peça sem compensação, ou seja, fez um sacrifício errado, algo inédito, pois se trata de um grosseiro erro de cálculo. Mas nem por isso perdeu a partida. Na 16ª jogada, numa posição ganhadora, Kasparov ignorou a óbvia continuação e o computador forçou o empate. Depois disso, na última partida, estando numa posição superior, Kasparov propôs o empate, o que deixou o match igualado.

Escrevendo no site “Jaque”, Amador Cuesta Robledo resumiu: “a palhaçada do match Kasparov x Deep Júnior só é comparável a outra pantomima, também sem graça nenhuma, que foi o match Kramnik x Deep Fritz”, também finalizado com empate. Cuesta Robledo nota que esses empates entre “homem” e “máquina” só serviam para que houvesse “outros matches e mais dinheiro para esses espertalhões”. E, sobre a última partida: “mesmo com posição superior, Kasparov propôs empate, igualando o match em definitivo. E logo teremos uma revanche, porquanto nunca faltarão imbecis para prestigiar esses ridículos despropósitos” (citações de Cuesta Robledo em Hélder Câmara, “A Festa Circense”, 15/02/2003).

Quanto ao último item, Cuesta Robledo parece que não tinha razão: já há algum tempo estão escasseando os imbecis para essas finalidades. Mas acertou em relação a “outros matches”. No mesmo ano, Kasparov conseguiu outro confronto “homem x máquina”, dessa vez para promover uma versão do programa alemão “Fritz”. Naturalmente, o match terminou empatado. Por que o fabricante iria pagar a ele US$ 175 mil? Para ter a propaganda de sua mercadoria prejudicada? Mas é sintomático que o cachê tenha descido de preço, razoavelmente, em poucos meses.

Carlos Batista Lopes


Fonte: http://www.cxv.com.br/html/cronicas/miseriaseglorias17.htm


Misérias e Glórias do Xadrez - 16

Misérias e Glórias do Xadrez - 16
Carlos Batista Lopes


A avaliação de que o encerramento do primeiro match favoreceu a Kasparov não é somente nossa. Em artigo publicado pela revista espanhola “Jaque”, o enxadrista e historiador uruguaio Maiztegui Casas, depois de mencionar que foi o socorro de Botvinnik que salvou seu “aluno predileto” da derrota, refere-se à atitude do velho campeão diante da decisão da FIDE: “Sem dúvida, consciente de que o verdadeiro favorecido naquela decisão era seu aluno (fato que somente se pode negar por fanatismo ou estupidez), ele apoiou a decisão de Campomanes e levou Kasparov pela mão até o título mundial” (Lincoln R. Maiztegui Casas, “Mijaíl Botvínik o la muerte de un superviviente – Un régimen, una escola, un hombre”).

Devemos o conhecimento deste artigo a um amigo, Fabrício Teixeira, ex-campeão estadual master do Rio de Janeiro e ás do xadrez rápido – único grande jogador de partidas de 1 minuto que conheço. Fabrício, conhecido nas polêmicas da Internet pelo pseudônimo de Romário, é uma inestimável fonte de informações e documentos sobre a história do xadrez.




Mas, continua o professor Maiztegui Casas, sobre a relação entre Kasparov e o maior dos jogadores soviéticos:

“Kasparov lhe deu o agradecimento da vaca atolada no pântano [fábula sobre a ingratidão equivalente à nossa do escorpião]. Quando Botvinnik discordou de alguns aspectos da sua conduta desportiva, rompeu com ele e dedicou-se a criticá-lo, vilipendiá-lo e até ridicularizá-lo de maneira permanente.

“No entanto, ninguém foi capaz de adivinhar a que extremos ele podia chegar. Em uma atitude que constitui todo um monumento à mesquinhez e à ingratidão, Kasparov se opôs a que Botvinnik fosse convidado a assistir as Olimpíadas de 1994 em Moscou, pretendendo que, se ele queria ver as partidas, que pagasse o seu ingresso, como qualquer um”.

Por desnecessário, não faremos comentários. Apenas acrescentaremos a informação de que Kasparov foi o principal organizador dessa Olimpíada, por sinal, a mais caótica de todas elas. Daí seu poder de determinar ou de vetar quem seria ou não convidado, em um evento que, oficialmente, era promovido pela FIDE – precisamente, a entidade contra a qual Kasparov estava abertamente amotinado desde 1993.

Por último, Botvinnik não esteve lá. Nem Karpov.


MOSCOU

Em 1990, cheguei a Moscou no mesmo dia em que começava, em Nova Iorque, o quinto match entre Karpov e Kasparov pelo título mundial. Impressionou-me, imediatamente, como os jovens – quase todos enxadristas, mais ou menos como no Brasil quase todos os jovens batem uma bola – torciam por Kasparov. Eles repetiam histórias que já haviam saído cinco anos antes na imprensa ocidental como se fossem fatos e verdades – mesmo depois que, em nosso lado do mundo, a destrutiva e empulhadora autobiografia de Kasparov, “Filho da Mudança”, nas palavras do GM Jonathan Tisdall, “foi muito eficiente para causar uma lenta, mas crescente onda de popularidade em direção a Karpov, que continua até hoje” (cf., Seirawan e Tisdall, “Five Crowns”, I.C.E., 1991 – a edição brasileira, de 2004, é uma tradução bastante ruim).




Em Moscou, perguntei a Dimitri, um jovem bastante inteligente – com apenas 20 anos ele dominava bastante bem o português e tinha um conhecimento extenso, ainda que não muito profundo, da obra de Lenin e dos clássicos da literatura mundial - porque ele dizia que Karpov era um protegido da burocracia. Não soube explicar. Karpov era um protegido porque era óbvio que ele era um protegido.
Que Deus nos livre das coisas “óbvias”! Em resumo, interpretei depois, aquilo era o que a imprensa dizia e, portanto, para Dimitri isso era o equivalente da verdade. Aliás, era a própria verdade.

Não era mais apenas a imprensa estrangeira que elevava Kasparov a um pedestal mais alto que Capablanca - e, principalmente, apresentava Karpov como um privilegiado por Brezhnev e outros dirigentes. A imprensa soviética - que, de facto, já havia deixado de ser soviética -, também. A rigor, ela repetia o que a outra publicara e continuava publicando. O que em uma era tentativa de usar um renegado em prol de seus interesses, na outra era repulsiva bajulação por parte daqueles que, no socialismo, achavam que o ideal maior de suas vidas era ser capitalistas. A isso, sob Gorbachev, se denominava “glasnost”. Kasparov, naturalmente, era o ídolo dessa gente.

Cinco anos antes, em 1985, a situação não era exatamente essa – mas já era indisfarçável o favorecimento a Kasparov também na imprensa soviética, o que não era um problema fácil para Karpov. Até mesmo Botvinnik, quando enfrentou Tahl, havia arfado sob o peso do apoio da imprensa a um oponente. Petrosian, falecido no ano anterior, ressentira-se disso durante, praticamente, toda a sua carreira no xadrez. E Karpov, do ponto de vista tanto ideológico quanto psicológico, não era um Botvinnik. Nem mesmo era um Petrosian.

No entanto, sua reação, durante o match, surpreendeu.

Na primeira partida, estava claramente inseguro. Demorou demais logo no quarto lance, claudicando na abertura – e, no entanto, estava jogando a Defesa Nimzoíndia, que alguns (por exemplo, Ludek Pachman, que já foi o autor mais lido entre os enxadristas) consideram, com alguma razão, a base do xadrez moderno. Na 20ª jogada, não reconheceu um erro de Kasparov – respondeu a esse erro com outro erro. Logo em seguida, perdeu um peão – e, com esse peão, a partida.

Na segunda, Karpov conseguiu evitar a derrota – ou, talvez, o mais correto seja dizer que, devido a seus erros, Kasparov desperdiçou a vitória, e não passou de um empate. Logo em seguida, Karpov pediu adiamento da próxima partida, um adiamento muito precoce, antes que um décimo do match fosse disputado.

A terceira foi um empate em 20 jogadas – por proposta de Kasparov, e aceito pelo campeão.



Mas, quando as previsões em relação a Karpov já eram as mais pessimistas, na quarta partida ele partiu para o ataque. Depois de 63 movimentos, com um adiamento pelo meio, ganhou a partida. O match estava empatado. Na seguinte, conseguiu rechaçar o ataque de Kasparov e venceu outra vez. Karpov estava, agora, à frente no score. Depois da quinta partida, derrotado seguidamente duas vezes, foi Kasparov quem pediu adiamento do próximo jogo.

Seguiram-se 5 empates, mas Karpov parecia ter-se recomposto.

Porém, na 11ª partida, quando o jogo estava equilibrado, Karpov cometeu um erro incrível para um Grande Mestre no 22º lance. Os nervos pareciam falhar no momento decisivo. O match estava, outra vez, empatado.

Depois de quatro empates, Kasparov realmente fez um jogo excepcional na 16ª partida, e venceu, depois de 40 movimentos, passando à frente no score. Mas, na 19ª, quando venceu outra vez, nitidamente foi Karpov que causou sua própria derrota, com mais um erro muito pouco característico dele.

Foi nesta partida que Kasparov, ao adiar a continuação, encontrou uma forma de demonstrar seu desrespeito ao oponente: jogou no tabuleiro o lance que selava no envelope, isto é, o lance que deveria ser secreto. Não houve medida por parte da arbitragem – do ponto de vista formal, revelar o próprio lance secreto não era proibido. Mas era evidente a intenção: passar desdém pela capacidade de análise do outro jogador, e de sua equipe. Portanto, um atitude anti-esportiva. Não foi por acaso que ele havia feito uma campanha tão escandalosa para afastar Gligoric da arbitragem.

Kasparov fez a mesma coisa no jogo seguinte, também sem protestos (nem isso) do árbitro. Nesta partida, Karpov tinha uma ligeira vantagem quando foi adiada a continuação, e, quando retomada, tentou a vitória até o 83º movimento, quando o empate foi inevitável.

No entanto, na partida que veio a seguir, foi Kasparov quem fracassou e jogou a vitória pela janela, devido a um erro no 40º movimento. Outro empate, e ele ainda estava à frente no score.

Mas a 22ª partida foi, finalmente, uma vitória típica de Karpov, isto é, uma vitória estratégica. Assim, ele diminuiu a distância e, com o empate na 23ª partida, a decisão foi para o último jogo do match. Para manter o título, Karpov precisava ganhar. Para conquistá-lo, bastava a Kasparov empatar.


A ESCOLHA

Essa última partida condensa os problemas de Karpov nessa época. A começar pela escolha da abertura. Certamente, a idéia de abrir com o peão do rei era partir para o ataque desde o início. Mas, numa partida decisiva, em que se precisa ganhar, isso é uma temeridade contra um forte jogador tático, como era o caso de Kasparov.

Além disso, é evidente que esta não é a única forma de atacar – sobretudo quando a força de Karpov sempre foi alicerçada na estratégia e a debilidade de Kasparov não está na tática. A abertura que Karpov escolheu facilita os recursos táticos e, sobretudo, as ameaças táticas, em que seu oponente é muito forte. Ou seja, Karpov escolheu o terreno do adversário para travar a luta, não o seu terreno.

É possível que essa escolha tenha sido determinada por considerações psicológicas – Bronstein, em 1951, surpreendeu Botvinnik ao escolher as linhas favoritas do oponente. Se foi essa a razão, a avaliação sobre Kasparov estava inteiramente errada e pior ainda estava a avaliação sobre a situação em que se travava a partida. Daremos um exemplo clássico, para que o leitor não aficionado em xadrez tenha idéia da questão a que estamos nos referindo.

Existe uma famosa partida decisiva de Lasker, travada contra ninguém menos do que Capablanca, em que a complexidade desses problemas de avaliação psicológica são particularmente nítidos.

No torneio de St. Petersburg de 1914, em que participaram todos os grandes jogadores da época – dando origem ao título de Grande Mestre, como foi mencionado na primeira parte deste artigo – Capablanca estava à frente de todos, quando, na 18ª rodada, enfrentou Lasker, então campeão mundial.

Com apenas dois jogos para completar a tabela (enquanto Capablanca tinha ainda mais três – contra Tarrasch, Marshall e Alekhine – que, posteriormente, venceu), a única chance aritmética de Lasker ser o vencedor do torneio era bater Capablanca nessa partida. Já para o grande jogador cubano, bastava um empate com Lasker para conquistar o primeiro lugar.

Como Karpov na 24ª partida do segundo match com Kasparov, Lasker jogava com as brancas, ou seja, iniciava o jogo. Precisando vencer, e com a vantagem de começar a partida, esperava-se que ele fosse logo para o ataque. Surpreendentemente, Lasker escolheu uma linha, a chamada “variante das trocas” da Abertura Ruy López (ou Abertura Espanhola), conhecida por ser pouco agressiva – a rigor, notória como uma boa escolha quando o jogador com as brancas queria apenas empatar. No entanto, ele precisava da vitória – e contra Capablanca!

Demolindo os prognósticos dos que assistiam ao torneio, Lasker ganhou o jogo – e o primeiro lugar no torneio, deixando Capablanca em segundo.

Em seu livro “Os Grandes Mestres do Tabuleiro” (1930), Ricardo Reti, o mestre tcheco que, 10 anos depois de St. Petersburgo, pôs fim a oito anos de invencibilidade do cubano (ver a segunda parte deste artigo), analisa a partida de Lasker em 1914 e faz a seguinte observação:

“Não é admissível que Lasker considere essa variante como forte (....). Portanto, é preciso supor que novamente são motivos psicológicos que o induzem a empregar essa variante em momentos transcendentais. Examinando-se as circunstâncias em que se encontrava Lasker, conclui-se que ele escolheu essa variante sempre que pôde supor em seu oponente a intenção de limitar-se a conseguir um empate. Se jogamos uma partida com a firme intenção de não empreender um ataque e de não arriscar-se, de só simplificar [ou seja, trocar peças, eliminando-as do tabuleiro]; se já tomamos de antemão essa determinação, tendo chegado a um estado de ânimo pacífico; então é muito difícil mudar de intenção durante a partida e jogar repentinamente com base num acirrado ataque. Porém, é inerente à 'variante das trocas' que as negras devem jogar no ataque e pela vitória, não pelo empate, pois, se decidimos pela simplificação, esta conduzirá para onde as brancas querem: a um final perdido para as negras. Este é o motivo psicológico pelo qual Lasker adota a 'variante das trocas' em partidas decisivas, quando acredita que desde o início seu oponente joga com a intenção de empatar”.

Ou seja, se Capablanca queria, ao menos, empatar, deveria, diante da linha escolhida por Lasker, ter jogado pela vitória. Ele não o fez – e perdeu a liderança do torneio, que mantinha desde seu início, no último momento.

Avaliações psicológicas desse tipo não são fáceis. Trata-se de escolher o terreno psicológico mais favorável para si e menos favorável para o oponente. Por isso, determinadas linhas que teoricamente (ou seja, lógica e matematicamente) são pouco sólidas, continuam sendo praticadas com sucesso - pois a escolha da linha tem de levar em consideração não apenas o elemento puramente teórico, ou seja, abstrato, mas a figura concreta do oponente, seu estilo, conhecimento, preferências, e, sobretudo, as condições reais em que se trava a partida.

Não parece ter sido por motivos desse tipo que Karpov, na última partida do segundo match, escolheu abrir com o peão do rei. Ou, mais exatamente, não parece ter sido em função de uma avaliação psicológica precisa de Kasparov que a linha de Karpov foi escolhida. Pelo contrário, a motivação psicológica parece ter sido a oposta – tentar vencer o oponente em seu campo de batalha favorito, talvez exorcizasse as ofensas e infâmias que ele, Karpov, vinha sofrendo, diariamente, já havia mais de um ano.

Infelizmente, esse é um mau motivo, determinado por uma auto-estima em estado de conservação algo precário. Kasparov sacrificou dois peões para criar uma posição dificílima, e Karpov errou, perdendo uma peça, a partida e o título de campeão mundial de xadrez.


SEVILHA

Não tomaremos o tempo do leitor com a descrição em minúcias dos cinco matches entre Karpov e Kasparov. Nem com as mesquinharias, que não foram em número modesto.

Diremos apenas que o match-revanche, no ano seguinte, seguiu mais ou menos o padrão deste, e que, na disputa seguinte, Karpov foi outra vez o oponente de Kasparov, que não conseguiu vencê-lo.

Mas Karpov também não conseguiu vencer – o match em Sevilha terminou empatado, devido a seus erros. Na 11ª partida, quando em nenhum momento anterior Kasparov conseguiu estar à frente do score, houve o que Tisdall, com razão, chamou de “erro gritante” por parte de Karpov.

Entretanto, na 16ª partida, Karpov igualou, vencendo de forma brilhante. A partir daí, Kasparov tentou empatar – se o score se mantivesse igualado até o fim das 24 partidas, ele manteria o título. Karpov aumentou a pressão, pois precisava de mais uma vitória e um empate para reconquistar o título. E, realmente, na penúltima partida, depois de uma jogada brilhante de Karpov, Kasparov ficou em desvantagem e acabou por cometer um erro crasso. Em situações de pressão, ele reagia pior do que Karpov. O problema é que, nos cinco matches, foi este que teve de agüentar a pressão.

Bastava a Karpov, agora, empatar na partida final. Foi um jogo em que ambos os jogadores tiveram a vitória e a desperdiçaram. Mas o último erro foi de Karpov, perdendo a partida e a oportunidade de reconquistar o título.

A partir desse momento – embora já tenha começado antes – Kasparov voltou-se abertamente contra o que restava da estrutura do xadrez mundial, construída após a II Guerra. De certa forma – aliás, de todas as formas – aquela também era uma criação soviética, com seus freios ao comercialismo, seus limites ao vale-tudo e seus ideais de uma comunidade mundial.

Sobretudo, a atividade de Kasparov iria voltar-se contra a escola soviética de xadrez, que não era um mero estilo de jogar, mas toda uma visão de mundo aplicada ao xadrez, que tinha por conseqüência uma determinada forma de jogar. Talvez por isso tenha se tornado tão raivoso em relação ao homem a quem devia a sua formação enxadrística, Mikhail Botvinnik. Aliás, devia a ele o título de campeão mundial. Talvez fosse exatamente isso o que ele não podia suportar em Botvinnik: dever algo a alguém – e, pior ainda, todos saberem o quanto ele devia. E Botvinnik era, precisamente, o fundador da escola soviética em xadrez.

Não se tratava apenas de uma tendência sociopática de querer submeter a tudo e a todos – havia interesses bem concretos a açulá-lo e condições políticas novas, nas quais seriam muito úteis as suas tendências anti-sociais. Reagan – ou, melhor, os que usavam esse decrépito canastrão - já estava em campo. Na URSS, Kasparov foi um dos dois heróis que eles conseguiram arrumar. O outro era Bóris Yeltsin. Uma dupla interessante: um sociopata e um alcoólatra.

Carlos Batista Lopes

Fonte: http://www.cxv.com.br/html/cronicas/miseriaseglorias16.htm


Misérias e Glórias do Xadrez - 15

Misérias e Glórias do Xadrez - 15
Carlos Batista Lopes


Em julho de 1985, a FIDE estabeleceu as regras para a nova disputa pelo título: o match entre Karpov e Kasparov voltaria a ter o número fixo de 24 partidas; em caso de empate, o campeão manteria o título; e, em caso de derrota, teria direito a um match-revanche.

Em suma, a solução para o impasse na disputa pelo título mundial, causado  pela regressão às normas de 1927, foi, simplesmente, voltar às normas elaboradas por Botvinnik e aprovadas pelo Congresso da FIDE de Paris, em 1949 - regras que haviam, sob pressão anti-soviética, sido alteradas pela própria FIDE desde 1963 e, especialmente, desde 1975. Nada poderia demonstrar de forma tão nítida a artificialidade daquelas mudanças: a FIDE parecia não saber o que fazer, senão repetir o que já havia sido feito.






Ao contrário do que disse Kasparov, a decisão não era uma concessão aos soviéticos, isto é, a Karpov. Ele conseguira o principal: garantir que o novo match começasse do zero, sem levar em consideração as 48 partidas anteriores. Era sobre Karpov que recaía esse golpe. Como já mencionamos, ele não pedira a anulação do match anterior – havia sido explicitamente contra a medida. No entanto, era penalizado com a anulação de cinco vitórias legítimas e duríssimas.

É verdade que o presidente da FIDE, Florencio Campomanes, havia, ao dar por terminado o primeiro match, em fevereiro, adiantado a proposta de que o novo match começasse em 0-0, mas essa questão dependia de aprovação posterior da entidade.



Apesar de claramente a seu favor, até hoje Kasparov repete que Campomanes, por pressão dos soviéticos, anulou o primeiro match para beneficiar Karpov. Pode ser que ele acredite nisso. É comum os charlatães, mais ainda os charlatães políticos, acreditarem na própria charlatanice. Porém, é difícil ver Campomanes, homem ligado à ditadura de Ferdinando Marcos – que, até quando se tornou um estorvo, foi o sustentáculo dos EUA no cerco à URSS a partir da Ásia - fazendo algo para beneficiar os soviéticos. Ainda mais com os norte-americanos concordando.

No entanto, não é bom simplificar a questão, mesmo que não tenhamos, por enquanto, uma explicação completa para ela: no final do primeiro match, realmente, Karpov estava muito mais desgastado, física e psiquicamente, do que Kasparov. Este, inclusive, ganhara as duas últimas partidas. Certamente, esticar ao infinito o match, até exaurir o oponente, era a tática de Kasparov, não a de Karpov.

ENCERRAMENTO

Como essa é uma questão que até hoje causa acirradas polêmicas, não poderemos evitar o exame de alguns detalhes.



Após a 47ª partida, jogada em 30 de janeiro, uma quarta-feira, Karpov pediu um adiamento da próxima, marcada para a sexta. Nesse dia, 1º de fevereiro de 1985, o presidente da FIDE, Florencio Campomanes, propôs a Yuri Mamedov, chefe da delegação de Kasparov, que o match fosse encerrado depois de mais oito partidas. Após esses oito jogos, se ainda não houvesse uma decisão (ou seja, se nenhum dos jogadores completasse as seis vitórias), Campomanes propunha a realização de um novo match, com número máximo de 24 partidas, e score começando em 0-0.

Mamedov disse que ia consultar Kasparov. Em seguida, Campomanes viajou e o ex-presidente da federação da Alemanha Ocidental, Alfred Kinzel, também presidente do comitê de recursos do match, ficou encarregado, pela FIDE, das negociações.

Kasparov recusou a proposta por causa do risco: bastaria a Karpov vencer uma dessas oito partidas para manter o título, enquanto ele ainda precisaria vencer quatro delas. Ou seja, era bastante claro para ele o risco da continuação do match – o que, aliás, não demandava muita perspicácia. Reparemos que a sua argumentação também serve para a continuação do match tal como então estava sendo disputado, com número ilimitado de partidas até que um dos jogadores vencesse seis delas. Tanto num caso quanto noutro, ele precisaria, após a 47ª partida, vencer mais quatro, enquanto Karpov precisaria apenas de uma vitória. Mas é evidente que ele notou a tendência da cúpula da FIDE para realizar outro match, começando em 0-0. Isso, naturalmente, o livraria de correr o risco ao qual se referiu.






Depois de mais um adiamento, dessa vez por razões administrativas – o match iria mudar de local - a 48ª partida foi jogada no dia 8 de fevereiro, outra sexta-feira. Kasparov venceu e pediu um adiamento da seguinte, que estava marcada para a segunda-feira, dia 11. No  mesmo dia, o presidente da FIDE voltou a Moscou e, por sua iniciativa, a partida, agora marcada para a quarta-feira, dia 13, foi novamente adiada.

No dia imediatamente posterior, Campomanes e o árbitro do match, Svetozar Gligoric, reuniram-se com Kasparov para discutir um pedido do presidente da Federação de Xadrez da URSS, Vitaly Sevastianov. Este, por sinal, não era um cartola a la Averbakh ou Kotov. Além de enxadrista, Sevastianov era um cosmonauta, famoso por haver jogado, com Adrian Nikolayev, a primeira partida de xadrez no espaço sideral - durante a missão da Soyuz 9, em junho de 1970 -, que durou duas órbitas ao redor da Terra. Era também engenheiro espacial, um dos projetistas das naves Soyuz e da estação espacial Salyut e o chefe do treinamento das tripulações espaciais soviéticas. Em síntese, um homem respeitadíssimo.





Sevastianov pedia um intervalo de três meses no match, para que os jogadores se recompusessem. Diretamente, isso dizia respeito, sobretudo, a Karpov. Mas também era um problema das condições gerais da disputa, ou seja, significava privilegiar a capacidade dos jogadores no tabuleiro, e não um resultado obtido pela exaustão de um deles.

Obviamente, Kasparov respondeu a Campomanes e Gligoric que, se Karpov não queria continuar, devia abandonar o match. Ele interpretara o pedido de Sevastianov como uma fraqueza de Karpov. E não seria ele quem deixaria de se atirar sobre uma fragilidade do oponente.

Pode ser que, nestes tempos de vale-tudo monopolista e mercantil, alguns considerem a resposta de Kasparov muito normal, pois se tratava de uma competição, e ele queria ganhar. No entanto, tratava-se de uma competição de xadrez, e não de uma competição para ver quem saía vivo – ou para matar o oponente. Mas essa diferença, realmente, ele jamais foi capaz de entender. Aliás, sempre fez questão de não entender - pelo menos, quando achava que quem poderia sair morto era o outro.

Além disso, com a lastimável exceção de Alekhine, que não primava pela esportividade – nem pela beleza de caráter - essa nunca foi a tradição do xadrez. Pelo contrário. Xadrez é esporte, e não uma guerra onde não há limites em relação ao oponente. Para ser exato, até na guerra existem limites – motivo pelo qual, após a II Guerra, alguns criminosos foram julgados e enforcados na aprazível cidade alemã de Nuremberg.

Certamente, sempre existiram jogadores de xadrez que estavam dispostos a tudo para ganhar – e qualquer enxadrista conhece, pelo menos, um ou outro. Porém, jamais essa conduta foi incensada como virtude, e sim execrada como lepra moral. Os grandes jogadores, mesmo Fischer – ver a sua atitude quando Tahl foi hospitalizado, durante o Interzonal de 1962 – sempre respeitaram esses limites, que são a essência mais pura do respeito ao adversário e, de resto, ao próprio esporte. Nisso, realmente, como em relação a muito mais, o único “grande predecessor” de Kasparov foi Alekhine.

Mas, inclusive por boa fé (mas principalmente por má-fé - e, entre estes, sobretudo o próprio Kasparov), houve quem descrevesse essa atitude em relação à proposta da Federação soviética como um ato de coragem e (cáspite!) até mesmo de heroísmo. Lamentavelmente, isso é uma bobagem. Somente para pessoas muito simplórias, dessas que acreditam no equivalente político da mula-sem-cabeça, ou para bajuladores da mídia reacionária, a URSS era aquela ditadura totalitária pintada pela propaganda da “guerra fria”. Se fosse, não teria durado mais de 70 anos, vencendo, inclusive, a máquina de guerra nazista. É verdade que, como em qualquer sociedade, havia limites, e é verdade que, ainda que confusamente a partir do final da década de 50, os soviéticos percebiam que estavam em meio a uma guerra – e isso determinava a natureza de boa parte desses limites. Mas Kasparov sabia perfeitamente que nada lhe aconteceria de muito grave por discordar da Federação da URSS – no máximo, teria de arcar com as conseqüências que, em qualquer país, arcam os que discordam publicamente da entidade ou do coletivo de que fazem parte.

COLETIVO

Porém, era essa noção, a de coletivo, que lhe faltava - e sempre lhe foi estranha. Ainda mais quando sabia que contava com o apoio dos inimigos do seu país e do seu povo, como ficou evidente na conferência de imprensa que Campomanes convocou, no dia 15 de fevereiro. Assim, suas tendências anti-sociais estavam em plena consonância com aqueles que há muito tempo queriam destruir a sociedade soviética. Hoje, quase 20 anos depois que a sociedade soviética foi realmente destruída, a questão das intenções imperialistas já não é mais matéria passível de dúvida ou discussão. Na verdade, também não era na época, pois essas intenções eram explícitas. Mas era com essa gente que Kasparov acumpliciava-se.

Porém, ninguém ainda conhecia muito bem o oponente de Karpov. Na tarde do dia anterior, isto é, 14 de fevereiro, Campomanes avisou a Mamedov que, como Kasparov recusava um acordo sobre o encerramento do match, usaria de sua autoridade para terminá-lo. No dia 15, quando o presidente da FIDE começou a ler sua declaração para a imprensa, Kasparov estava sentado na bancada dos jornalistas estrangeiros.

Estranhamente, Campomanes afirmou, na declaração, que os dois jogadores estavam de acordo com o encerramento do match. Provavelmente, achava que a cúpula do xadrez soviético – ou alguma instância do governo – mandavam em Kasparov, e também em Karpov. Devia ser essa a idéia que as elites filipinas faziam da URSS... Porém, aberta a entrevista coletiva, teve que se desmentir. Perguntado pelos jornalistas, disse que havia se reunido com Karpov pouco antes da conferência de imprensa e que o campeão estava contra a suspensão, e queria jogar a próxima partida de acordo com a agenda. Respondendo a outra pergunta, disse que Kasparov também tinha a mesma posição.

Anatoli Karpov chegou à conferência de imprensa no meio da entrevista de Campomanes. Ao lado do presidente da FIDE, confirmou que era contra a decisão e que, se dependesse dele, o match seria retomado logo. Kasparov, em meio aos enviados e correspondentes estrangeiros, interpelou Campomanes com a pergunta óbvia: se os dois jogadores queriam continuar, por que não continuar?

É difícil saber o que ele realmente queria. Talvez pensasse, após o pedido de Sevastianov e de sua segunda vitória consecutiva, que Karpov estava nas últimas. Mas não é garantido que fosse esta a sua principal motivação. Pode ser, também, que, diante do encerramento do match, apesar da decisão da FIDE não lhe ser desagradável, tenha visto uma oportunidade de fazer o papel que a mídia estrangeira estava esperando dele... Seja como for, tanto numa quanto noutra hipótese, uma coisa é certa: era uma encenação para a mídia. O que ficou bastante claro quando Campomanes sugeriu que se aproveitasse a presença dos dois jogadores, convidando-os a discutir a questão em outra sala, a portas fechadas. Kasparov recusou. Mas, depois que Karpov e os dirigentes mantiveram a reunião e se retiraram, deixando-o só com a imprensa, mudou de posição e resolveu entrar na sala. Não era possível continuar a encenação sem a presença dos outros.

O campeão acatou a decisão da FIDE. O desafiante recusou-se a assinar o acordo que encerrava o match. Nenhum dos dois poderia adivinhar que o match encerrado era apenas o primeiro de cinco entre eles, ao fim dos quais jogariam 144 partidas pelo título mundial.

GLIGORIC

Karpov havia feito um esforço quase sobre-humano. Mais uma vitória e ele fecharia o match, enquanto Kasparov, depois da 48ª, ainda precisaria vencer três partidas e, ao mesmo tempo, impedir que seu oponente ganhasse qualquer uma. Em suma, um altíssimo risco.

Do ponto de vista de Karpov, de que valera o seu esforço? Agora, tudo começaria do zero, com Kasparov tendo suas cinco derrotas apagadas do score. Não é preciso dizer com quem estava a vantagem psicológica, que não era pequena. Qualquer um que já tenha disputado uma competição enxadrística sabe como algo assim pode interferir, e interfere, no desempenho de um jogador.

Mas as coisas não ficaram por aí. Em seguida, Kasparov levantou suspeição contra o árbitro do primeiro match, o iugoslavo Svetozar Gligoric.

Não era qualquer suspeição. Gligoric havia sido um dos maiores jogadores de todos os tempos. Durante anos, foi, provavelmente, o melhor jogador fora da URSS – sem dúvida, melhor do que aqueles que, antes de Fischer, disputavam esse título no ocidente: o polaco-americano Reshevsky, o polaco-argentino Najdorf e, depois, o dinamarquês Bent Larsen. Era, além disso,  unanimemente considerado um grande teórico e um grande analista, um dos poucos que era respeitado até por Fischer.

Porém, mais do que suas qualidades enxadrísticas, Gligoric era (e é, hoje, com 84 anos) um herói da guerra contra o nazismo, onde lutou na guerrilha iugoslava – os famosos “partisans”, que, na batalha do Neretva, em 1943, haviam quebrado o moral das divisões alemãs, italianas e fascistas croatas. O caráter de Gligoric jamais foi matéria de dúvida ou discussão. Pode-se discordar dele – mas não desrespeitá-lo. Sua atitude posterior, já idoso, de opor-se ao esquartejamento de seu país, que lhe causou tanta amargura, somente confirma o que estamos dizendo.

Kasparov, porém, como sabemos, não era dotado desse tipo de escrúpulo diante de pessoas com estatura moral imensamente superior. Acusou Gligoric de haver favorecido Karpov. Onde e quando, ninguém sabe, e a única coisa que Kasparov apresentou contra ele foi sua posição favorável ao encerramento do primeiro match, que já naquela época apresentava como uma medida com o exclusivo objetivo de prejudicá-lo. No entanto, que árbitro de bom senso não seria favorável a acabar com o que parecia uma loucura interminável?




Apesar desse alarido, Campomanes anunciou que Gligoric seria o árbitro do novo match. No final de julho, atacado por Kasparov, o iugoslavo renunciou. A FIDE, numa declaração oficial no dia 6 de agosto de 1985, não aceitou a renúncia e confirmou Gligoric. Porém, duas semanas depois, recuou: designou o alemão Lothar Schmid, que havia sido árbitro do match Fischer-Spassky. Mas, dessa vez, foi Schmid que não aceitou. A FIDE acabou por nomear dois árbitros: o búlgaro Malchev e o soviético Mikenas – originário da Lituânia – para se revezarem na função.

O próximo passo foi uma campanha na mídia fora da URSS. Nunca a mídia ocidental, até então, concedeu tanto espaço para um jogador supostamente soviético – naturalmente, para atacar um compatriota muito mais identificado com seu próprio país. Da “Playboy” até o mais obscuro pasquim reacionário, para não falar da TV, estavam todos à disposição de um soviético e membro do PCUS...

E, então, na Sala de Concertos Tchaikovsky, em Moscou, a 3 de setembro de 1985, começou o segundo match entre Karpov e Kasparov.

Carlos Batista Lopes

Fonte: http://www.cxv.com.br/html/cronicas/miseriaseglorias15.htm


Misérias e Glórias do Xadrez - 14


Misérias e Glórias do Xadrez - 14
Carlos Batista Lopes

Devido à sua importância para o tema de que nos ocupamos na parte anterior deste artigo - e, inclusive, pelo marcante estilo literário - tomamos a liberdade de, parcialmente, reproduzir a seguinte mensagem de mestre Hélder Câmara. Para os não aficionados em xadrez, o Mestre Internacional Hélder Câmara, duas vezes campeão brasileiro, três vezes vice-campeão, integrante da equipe brasileira nas Olimpíadas de Lugano, Siegen, Nice, La Valetta e Tessalônica, além de participante em vários outros eventos internacionais, relevante teórico - a ele se deve a Defesa Câmara, também chamada de Defesa Brasileira – é uma das glórias do xadrez brasileiro. Porém, sobretudo, é homem de profunda cultura humanista. Eis a sua mensagem:

“SP. 13 nov 2007.

“Caro Carlos Lopes, apenas algumas observações sobre o seu precioso e preciso trabalho: o Zukhar era realmente um eficientíssimo parapsicólogo, com PhD na Universidade de Leningrado, onde havia uma cadeira específica nessa área, que foi estimulada até em demasia pelas autoridades soviéticas, mas que agora está desativada.

“Zukhar, que já trabalhara com Korchnoi, sentava-se na primeira fila de espectadores do match Karpov x Korchnoi e, não obstante espesso vidro colocado no proscênio, ele teria conseguido influenciar negativamente na atuação de Korchnoi - segundo alegavam os secundantes do descarado apátrida. Daí, porque ele se valeu desses dois aventureiros da seita Ananda Marga para criar uma pantomima em Baguio, ameaçando também abandonar o match, se Zukhar não fosse colocado, no máximo, na oitava fileira de cadeiras distante do palco - para que as suas ondas mentais não influenciassem negativamente na mente de Korchnoi. E assim foi feito!

“Quando o match ficou igualado em 5 x 5, foi a vez da Delegação Soviética fazer suas exigências: se Zukhar não se sentasse onde quisesse, aquilo seria considerado como uma acusação espúria contra Karpov e ele (Karpov) não jogaria mais! Aí, foi a vez da FIDE ceder, e Zukhar sentou-se na primeira fila do teatro. É claro que isso valia muito mais como provocação e, quem sabe, como uma insinuação de que Zukhar podia realmente interferir no resultado da partida - capaz de perturbar uma mente sempre deturpada como a de Korchnoi. Se isso teve influência ou não sobre Korchnoi (é possível que tenha tido, não por causa de Zukhar, mas pela cabeça fraca do próprio Korchnoi), o fato é que ele jogou uma defesa inédita em seu repertório, a Pirc - sendo facilmente derrotado.

“Depois disso, criou-se a lenda de que a KGB ameaçara a esposa e o filho (Igor) de Korchnoi para que ele perdesse a partida. E, mais, eles seriam proibidos de deixar a URSS para se encontrar com o 'papai' Korchnoi (que há muito estava amancebado com uma coroa chamada Petra - com quem vive até hoje). Aqui, vem a parte cômica dessa história: a KGB (....) liberou mulher e filho de Korchnoi para deixarem a URSS e se unirem a ele, desmascarando com isso o seu blefe (!). E o que fez Korchnoi? Recusou-se terminantemente a recebê-los na Suíça, sendo que todos conhecem o processo que o seu filho Igor moveu contra ele, por danos morais e materiais!

(....)

Um abraço amigo, Hélder Câmara.”

Com esta inestimável ajuda, encerramos as nossas considerações sobre Korchnoi e sua entourage. Naturalmente, elas não seriam necessárias se até hoje não houvesse alguns incautos – outros, nem tão incautos assim – que ainda repetem a propaganda reacionária de 30 anos atrás, como se fosse o supra-sumo da verdade. Embora, é forçoso reconhecer que, na atualidade, esse besteirol permanece insepulto principalmente devido a Kasparov.

KARPOV

Já que começamos por um rescaldo da parte anterior deste artigo, voltemos por um momento às relações entre Botvinnik e Karpov.

Há um ano, quando Karpov esteve no Brasil, um amigo, Ubirajara Nascimento Rodrigues, diretor do Clube de Xadrez Virtual (CXV), entidade que se dedica ao xadrez por e-mail, pediu-me que formulasse alguma pergunta ao ex-campeão mundial. De pronto, sugeri a ele a única pergunta que veio à mente: “qual foi a influência de Botvinnik em sua carreira?”. Transcrevemos a resposta de Karpov, na entrevista a Ubirajara:

“Por algum tempo estudei na Escola de Botvinnik e a coisa mais importante que ele me passou foi que você tem que trabalhar muito o xadrez e se preparar muito seriamente, trabalhar todos os dias. Isso é muito importante (o conjunto da entrevista pode ser encontrado em: http://www.cxv.com.br/html/varios/AnatolyKarpov.htm).

Isso foi tudo. Nem uma palavra a mais. Nenhuma observação sobre estilo ou sobre análise, ou sobre escolhas de linhas ou planos estratégicos – um conceito que Botvinnik desenvolveu e ao qual Karpov sempre foi rigorosamente fiel.

Bruce Pandolfini (mais conhecido, pelos que assistiram ao filme “Lances Inocentes”, como o treinador, interpretado por  Ben Kingsley, do garoto Josh Waitzkin) escreveu que as partidas de Karpov são sempre “didáticas”, ou seja, são claras de uma tal forma que sempre ensinam alguma coisa a quem as refaz. É verdade. Mas essa é uma característica comum entre Karpov e Botvinnik.

Havia outras características em comum. Ambos eram membros do PCUS. Karpov, além de deputado eleito para o Soviete Supremo, foi membro do Comitê Central do partido.

Porém, é verdade que, nisso, tanto pode haver uma fonte de identidade quanto de discrepâncias: os comunistas da época em que Botvinnik se formou eram aqueles que ergueram um país arrasado; que, sob cerco, construíram uma indústria poderosa e coletivizaram o campo; que enfrentaram uma luta feroz dentro do país contra a quinta-coluna capitulacionista; que, logo em seguida, tiveram de resistir e vencer a invasão nazista, com rios de sangue encharcando a sua terra; e que, depois de tudo isso, comandaram a nova reconstrução do país. Em suma, gente que estava próxima dos personagens de Ostrovsky, em especial o Pavel Korchagin de “Assim Se Forjou o Aço”.

Karpov, nascido em 1951, não conheceu essas épocas de sofrimento e heroísmo, exceto de forma indireta. Como alguns outros milhões de membros do PCUS dessa época, Karpov viu o país ser corroído por dentro - pelo acomodamento, espírito burocrático, bajulação ao ocidente e, simplesmente, pela traição - sem saber o que estava acontecendo, e, portanto, sem saber o que fazer diante do cada vez mais cinzento ambiente que surgiu a partir de 1956. No entanto, mesmo sem saber o que fazer, mesmo paralisados e intimidados, eles não eram trânsfugas. Faziam, e fizeram, o que podiam – isto é, o que a sua consciência lhes permitiu fazer – pelo país e pelo seu povo. O papel de trânsfuga estaria destinado a uns poucos, os Gorbachev, Yeltsyn e Kasparov.

POLÍTICA

É interessante, do ponto de vista histórico, observar que a partir de 1972 a disputa pelo título de campeão mundial de xadrez torna-se abertamente política. Mesmo com o abandono de Bobby Fischer, não se voltou ao estado anterior, em que a luta política ficava em segundo plano em relação à disputa enxadrística. Daí, ser totalmente inútil – e mentiroso – ignorar essa dimensão agudamente política que o xadrez, em especial a luta pelo título mundial, adquiriu. Não por acaso, Kasparov não a ignora. Seu ponto de vista é, somente, o da direita em relação a essas disputas. Na verdade, “Meus Grandes Predecessores” somente pode ser lido como uma auto-justificativa da posição reacionária e colaboracionista do autor. O resto, inclusive o xadrez, é apenas uma espécie de excipiente químico.

O caráter de Kasparov começou a ficar nítido logo depois de encerrado o primeiro match com Karpov. E, notemos, ele foi precoce: tinha apenas 22 anos. Em relação a Korchnoi, ele possuía algumas lastimáveis vantagens, além da precocidade de caráter, ou da ausência dele: não era um histérico, exceto em momentos extremos; sempre esteve mais para a conduta fria. Ou, diria um psiquiatra, estava mais para sociopata do que para neurótico. 

Logo depois do primeiro match, Kasparov propôs que o lugar de campeão fosse considerado vago. Era uma proposta absurda. Depois de cinco meses e 48 partidas, quando o match foi anulado pelo presidente da FIDE, o resultado estava em 5-3 para Karpov, que, inclusive, havia sido contra a anulação. Por que, então, considerar vago o título?

Não era apenas a popular “guerra de nervos”. A pressão era para que o próximo match começasse do zero, sem considerar os resultados do primeiro. Evidentemente, o principal prejudicado com isso seria Karpov, uma vez que teria cinco vitórias desconsideradas e, Kasparov, apenas três.

Quanto à “guerra de nervos”, o problema é que os soviéticos, em geral, não estavam acostumados com isso dentro do seu próprio país – e, menos ainda, dentro do PCUS, ainda que ela existisse. Fazia 30 anos que toda a ideologia oficial era uma negação das formidáveis tensões inerentes à construção de um novo regime social. E, relembremos, não apenas Karpov, mas também Kasparov, eram membros do PCUS. O último, além do mais, era dirigente nacional da Juventude Comunista (Komsomol). O fato é que tanto Karpov quanto a maioria dos soviéticos não conseguia entender o sentido do que Kasparov fazia. Em suma, subestimavam – ou, mesmo, ignoravam totalmente – a malignidade de suas ações, seu oportunismo e falta de escrúpulos. Daí a sua popularidade nesse momento, em especial entre os jovens, criados, fazia anos, no culto à ilusão.

Porém, a mídia imperialista – e, provavelmente, os serviços de “inteligência” ocidentais – perceberam logo qual era a questão. Isso, aliás, foi o mais peculiar no caso. Desde o início de sua carreira, os inimigos da URSS perceberam que podiam contar com Kasparov. No entanto, este jamais foi algum “dissidente”. Como podiam, então, estar tão bem informados sobre Kasparov?


Se algum espiroqueta reacionário interpretar essas questões como tentativa nossa de dizer que Kasparov já era, antes dos 22 anos, um agente da espionagem ocidental, isto será apenas porque se trata de um espiroqueta.

A questão é outra. Na década de 80, após a chegada de Ronald Reagan à Casa Branca, houve uma mudança no foco da política imperialista em relação à URSS. Até então era nos chamados “dissidentes” - algumas almas penadas sem quase respaldo algum dentro do país – que se depositavam as esperanças da mídia e dos órgãos de governo dos EUA.

Nos anos 80, isso mudou. Percebeu-se que com essa gente pouco se poderia fazer para sabotar a URSS por dentro. Os chamados “dissidentes” eram uma quinta-coluna, mas de uma ineficiência tremenda, que faziam questão de colocar um rótulo na testa e estar longe de qualquer atividade pública real – ou seja, faziam questão de cortar suas ligações com o povo e com os órgãos que detinham o poder na URSS.

Assim, o foco mudou para dentro do próprio PCUS e do governo. De certa forma, era a volta da política seguida pelos alemães nos anos 30 do século XX. Nesses anos, como registraram pessoas insuspeitas como Joseph Edward Davies, embaixador dos EUA em Moscou, e até pelo príncipe e lorde Mountbatten – que, além de primo do rei da Inglaterra, era sobrinho da última czarina – os soviéticos haviam acabado com o espaço para a quinta-coluna dentro do Estado soviético e do PCUS.

Isso teve efeitos duradouros. O foco nos “dissidentes” não era apenas uma opção dos governos imperialistas. Era também porque não tinham outra opção. Esta somente surgiria nos anos 80, quando os 30 anos anteriores de progressivo culto ao mercado, defensiva ideológica e conciliação começaram a brotar em frutos amargos e, de resto, venenosos – finalmente havia, depois de três décadas de gestação dentro do PCUS e do Estado soviético, uma camada que poderia ser aproveitada com muito mais sucesso do que aqueles indigentes, quer dizer, “dissidentes”.

PRIVILÉGIO

Portanto, incensar Kasparov era plenamente coerente com essa nova política imperialista. Para muitos, era algo estranho, pois eles nunca agiram dessa forma quando o título mundial de xadrez era disputado por dois soviéticos. Mas, também, jamais houve antes um “soviético” da marca de Kasparov disputando o título.

Assim, quando Kasparov comparou a situação depois do match anulado com a situação após a morte de Alekhine, em 1948, as moscas, que já voejavam em torno dele há algum tempo, ficaram particularmente assanhadas. Evidentemente, havia uma diferença entre a situação de 1985 e a de 1948: Karpov estava vivo. Mas o problema era exatamente esse: Karpov era um representante do regime que queriam matar.

Logo, Kasparov se tornou, na propaganda, um perseguido pelos soviéticos, que estariam prejudicando sua preparação e, especialmente, negando a ele a ajuda de analistas do mesmo porte daqueles que estavam com Karpov. Hoje, ninguém sério repete mais essas coisas. Kasparov escolheu e demitiu quem ele quis da sua equipe – isto é, naturalmente, dentre aqueles que aceitaram fazer parte dela. Porém, há outro aspecto: o GM Valery Salov demonstrou convincentemente que Kasparov foi privilegiado em relação a Karpov na assistência durante os matches. O que era perfeitamente coerente com a defensiva em relação à campanha deflagrada a partir do ocidente. Aliás, não era a primeira vez que acontecia algo semelhante.

E, agora, leitor, como o espaço acabou, o resto fica para a próxima.

Carlos Batista Lopes