segunda-feira, 22 de agosto de 2016

HISTÓRIAS DE BOBBY FISCHER

BOBBY FISCHER
Por Yasser Seirawan

Quando eu estudava na Garfield High School, em Seattle, meu professor de física pediu à classe que escrevesse um trabalho sobre a teoria do Big Bang (A Grande Explosão) da criação do universo. Em suas aulas, ele parecia especialmente entusiasmado com a teoria, elogiando-a efusivamente. Eu não compartilhava do entusiasmo dele, tendo dúvidas sobre a teoria, mas, mesmo assim, escrevi diligentemente um ensaio intitulado “No princípio”. Ele apresentava o conceito do Big Bang e eu escrevi favoravelmente sobre como a teoria fazia sentido. Recebi um “A+” pelo trabalho e desde então penso sobre o “Princípio”.

A LENDA FISCHER SE INICIA

“O Big Bang”, não apenas para a minha carreira de xadrez, mas para muitos enxadristas americanos, foi o sucesso de Robert James Fischer em 1972 (1943-2008). Naquele ano, ele se tornou o décimo primeiro Campeão Mundial de Xadrez segundo a Federação Mundial de Xadrez. Sua vitória no match de 1972 contra Boris Spassky, da União Soviética, teve um papel central no meu entusiasmo pelo xadrez. Seu sucesso impulsionou o povo americano para o xadrez e o match com Spassky foi notícia de primeira página por vários meses. Logo todos sabiam da história: ele foi o americano que enfrentou “sozinho” o rolo compressor de xadrez da União Soviética, derrotou-os todos sucessivamente e ganhou a coroa, tornando-se o Campeão do Mundo. Meu círculo de amigos íntimos de xadrez estava em polvorosa. “Bobby”, como era carinhosamente conhecido por todos, era simplesmente o brinde dos tempos. O fenômeno Bobby Fischer foi extraordinário.


A revista Life fez uma grande reportagem de capa sobre ele, enquanto a mídia acompanhava todos os seus movimentos dentro e fora do tabuleiro. Após sua vitória em Reykjavik, na Islândia, em 1972, Bobby foi homenageado com um desfile na cidade de Nova Iorque e recebeu as chaves da cidade; apareceu no programa Tonight de Johnny Carson; fez uma paródia com Bob Hope; o presidente Nixon o saudou como um herói nacional... E então, no auge de seu reconhecimento e conquistas profissionais, ele deixou o palco e desapareceu.

ONDE ESTAVA O BOBBY?

Dizer que a situação era exasperante seria um eufemismo. Todo fã de xadrez nos Estados Unidos aguardava sua próxima partida, torneio e confronto. A impetuosa marcha de Bobby pelo ciclo do Campeonato Mundial e na disputa pelo título tinha sido tão dominante que simplesmente não havia dúvida de que ele seria o vencedor no próximo torneio ou evento em que competisse. Vivenciamos uma ansiedade coletiva enquanto aguardávamos o anúncio de quando e onde ele iria jogar novamente. Essa pausa em sua carreira coincidiu com a época em que eu comecei a jogar e me deu uma chance de tentar me igualar. Eu aprendi a repetir suas maiores vitórias, inclusive a “Partida do Século” contra Donald Byrne. Uau! Disputada quando ele tinha apenas 13 anos.

Eu me emocionava com as histórias sobre a sua partida contra Robert Byrne no Campeonato Mundial dos Estados Unidos. Bobby tinha sacrificado uma peça e os Grandes Mestres que faziam comentários durante a partida diziam sabiamente ao público que ele tinha jogado levianamente e agora estava perdido... Em seguida, para a surpresa deles, Byrne abandonou a partida. As histórias eram todas muito inspiradoras. Era como se Bobby estivesse em um mundo próprio.


Os meses se passavam e ainda não se tinha notícia sobre o esperado retorno triunfal de Bobby ao tabuleiro. A preocupação cresceu. O próprio Bobby não havia dito a todos que, como Campeão do Mundo, ele iria jogar com frequência e manter um papel ativo jogando em todos os eventos maiores e mais importantes? Citava-se amplamente que Bobby teria dito em uma entrevista: “Tudo o que eu quero fazer é jogar xadrez”. Onde estava ele? Nesse período de trevas no xadrez, parecia que ele estava se escondendo – mais especificamente, evitando toda a imprensa e os paparazzi. Ele parecia especialmente tímido diante das câmeras. O que ele estava fazendo? Estava estudando? Estava jogando “partidas de treinamento particulares” para manter sua vantagem? Bobby não estava apenas ausente – ele tinha desaparecido completamente. Um vácuo de xadrez havia sido criado. O desfile tinha parado, o líder era um desertor.

Em 1974, apareceu um novo livro, escrito por Brad Darrach, repórter da revista Life, intitulado Bobby Fischer vs. the Rest of the World. Ele causou sensação em meu círculo de amigos. Devorei o livro ansiosamente, saboreando todas as revelações sobre as opiniões e o comportamento de Bobby. Várias passagens me fizeram rir alto, imaginando o que Bobby teve de suportar durante o vendaval a seu redor. “Tire os russos das minhas costas”, foi o que ele disse ao coronel Ed Edmondson, o chefe de sua delegação, e essas palavras adquiriram vida própria. “Saia das minhas costas!” ouvia-se nos clubes de xadrez e no café Last Exit, onde aprendi a jogar e usar um relógio de xadrez para jogar partidas de Blitz, ou de cinco minutos.


As especulações sobre o que Bobby estaria fazendo ou deixando de fazer pareciam crescer e tornar-se mais extravagantes com o passar do tempo. A Igreja Universal do Reino de Deus de Garner Ted Armstrong parecia desempenhar um papel central na vida de Bobby. Essa Igreja parecia ser uma espécie de culto apocalíptico de fundamentalistas cristãos que acreditavam na profecia do Novo Testamento. O apocalipse estava sobre nós e somente os verdadeiros crentes seriam salvos. Circularam rumores de que Bobby tinha doado os seus ganhos com o Campeonato Mundial para a Igreja. Sua secretária particular, “Claudia”, um membro da Igreja, era responsável por entrar em contato com Bobby e repassar os convites e propostas comerciais. Ela parecia ser o único canal de contato com Bobby. Espalhavam-se rumores sobre ações judiciais de Chester Fox, o homem que tinha os direitos de filmagem do jogo de 1972, assim como de uma ação judicial contra os editores do livro de Darrach. Todos os detalhes eram avidamente compartilhados.

Fiquei sabendo que Bobby tinha recebido uma oferta de um milhão de dólares para endossar um xampu em um comercial. Um milhão de dólares! Que quantidade assombrosa de dinheiro! Dinheiro fácil com certeza. Bastava tornar-se Campeão Mundial de Xadrez e patrocinadores e ofertas comerciais bateriam à sua porta. Como Bobby tinha reagido a uma oferta tão maravilhosa? A resposta que nos surpreendeu foi que Bobby recusou. Recusou um milhão de dólares? Seria possível? E, em caso afirmativo, por quê? A resposta foi que Bobby recusou a oferta comercial pela mais simples das razões: ele não usava aquela marca particular de xampu. Esta resposta impressionante provocou incrédulos minutos de silêncio seguido por gargalhadas. Não parecia possível! “Sério?” todos perguntamos. Sim, fomos informados – Bobby é uma pessoa muito “pura”, que nunca iria endossar um produto no qual não acredita pessoalmente. Hmm.


Essas histórias me fizeram reavaliar toda a minha noção de endossos comerciais. Será que eu seria tão puro? Rejeitaria uma oferta de um milhão de dólares porque eu não usava o produto em questão? Certamente que não! Eu também não possuía um Rolls Royce nem um relógio Rolex Midas, mas por um milhão de dólares eu certamente os indicaria como excelentes produtos, especialmente se algumas amostras fossem fornecidas como parte de meu apoio! Afinal, eu deveria ter a chance de experimentá-los. Histórias sobre Bobby pululavam. Era impossível distinguir mito de realidade. Repórteres escreviam tudo o que imaginavam, e não havia ninguém para desmenti-los. Toneladas de lixo eram vomitadas e constantemente recicladas. A ficção tornou-se realidade, repetida por um texto atrás do outro. Os amigos, perplexos com essas reportagens, pediam a Bobby que escrevesse cartas para corrigir os autores, mas geralmente sem sucesso. Meus amigos de xadrez de Seattle ansiavam por qualquer notícia de Bobby. A sabedoria reciclada era a de que ele estava com a Igreja Universal do Reino de Deus, que Claudia conduzia seus negócios e que, em vez de treinamento de xadrez, ele estava concentrado no processo sobre o livro de Brad Darrach. Não havia apoios comerciais, nem torneios, nem notícias. Estávamos dolorosamente vazios de histórias para contar uns para os outros.

Artigos constantemente repetiam e alardeavam o seguinte: Bobby desprezava a imprensa, recusou todos os pedidos de entrevista e não queria que as pessoas soubessem onde ele vivia: que levava uma vida solitária em Pasadena, Califórnia, usando transporte público para fazer viagens à Biblioteca Pública de Los Angeles para fazer pesquisas para seu processo judicial; que todos os seus amigos lhe prometeram sigilo e que estava afastado de sua família.


Embora seja apenas especulação da minha parte, parece que a ação judicial de Bobby contra Brad Darrach teve um papel central em sua vida por muitos anos e terminou em desastre para ele. Em sua edição de junho de 1977, a revista Chess Life & Review  relatou:
“A ação judicial de 5 milhões de dólares por invasão de privacidade movida por Bobby Fischer contra o autor Brad Darrach, da Time-Life International e Stein and Day Publishers, foi indeferida pelo juiz do Tribunal Regional da Califórnia, Matt Byrne. Fischer acusara o autor e os editores de quebrar promessas escritas e orais de não publicar detalhes de sua vida privada. Furioso com o resultado, Fischer disse ao juiz David Byrne: ‘Não pagarei um centavo de imposto de renda até que seja feita justiça neste caso.’ Palavras impressionantes e reveladoras de Bobby. Seu profundo antagonismo às autoridades federais dos Estados Unidos tinha começado.

O MATCH DE 1975

Um dia, um raio de luz nos trouxe energia: Bobby teve uma carta publicada na edição de novembro de 1974 da Chess Life & Review, na qual ele propunha novas, ou talvez antigas, regras para o match de defesa do título programado para 1975. Em vez das regras do melhor de 24 partidas que ele usou para derrotar Boris Spassky, Bobby queria retroceder cem anos para as regras de Wilhelm Steinitz, propondo um confronto do primeiro a ganhar dez partidas, desconsiderando-se os empates. Estas regras incluíam a condição de que, se o Campeão Mundial que estivesse defendendo o título (Fischer) vencesse nove partidas, ele não poderia perder o match. O Campeão Mundial teria que vencer dez partidas para ganhar a competição, assim como o Desafiante – mas, se o Campeão Mundial vencesse nove partidas, o pior que poderia acontecer seria um empate com nove vitórias de cada um. O prêmio seria dividido igualmente em caso de um empate de nove vitórias, mas o Campeão Mundial conservaria seu título.

A proposta de Bobby provocou imensas discussões nos círculos e revistas de xadrez. Matemáticos escreveram extensamente sobre como um empate de 12 a 12 com o Campeão conservando seu título era mais vantajosa para o Campeão Mundial do que as regras de obrigação de vitória em dez partidas. Na Chess Life & Review, Fischer explicou que, como os empates não contavam, os dois adversários estariam motivados a jogar por uma vitória em todas as partidas. Era tudo muito excitante. Bobby estava voltando! E também não jogaria apenas as 24 partidas. Quem sabia quanto tempo iria durar um match contra o Desafiante soviético Anatoly Karpov? Seriam meses de partidas. Ou jogaria?


A instituição de xadrez que teria que aprovar as mudanças nas regras era a Federação Internacional de Xadrez (FIDE) que, como muitas instituições internacionais da época, era dominada pela União Soviética e seus aliados. As propostas de Bobby seriam aceitas pelos delegados nacionais na Assembléia Geral da FIDE, ou as mudanças propostas por Bobby seriam rejeitadas? De repente, pessoas que nada sabiam sobre a FIDE começaram a aprender sobre seu Comitê Central, suas regras e seus procedimentos de votação. Era tudo muito estranho, mas, de alguma forma, também fascinante.

Mais ou menos na época em que se acirrava a discussão sobre se as propostas de Bobby seriam mais justas para o Desafiante do que uma disputa de duração fixa, na qual os empates aproximavam o líder do título cobiçado, surgiram rumores de que o ditador filipino Ferdinand Marcos tinha oferecido cinco milhões de dólares para sediar o Campeonato Mundial de Xadrez de 1975. Todos se voltaram para a FIDE – certamente os delegados aprovariam as mudanças nas regras, Bobby estaria na disputa e milhões de dólares estariam em jogo. Com 20% do dinheiro indo para a FIDE, seria uma oferta boa demais para ser recusada. Estávamos tontos de empolgação. A votação na FIDE seria uma formalidade. Então o mundo do xadrez foi engolido por um buraco negro. O ex-Campeão Mundial Max Euwe, na época presidente da FIDE, convocou um congresso especial da FIDE para votar sobre as propostas de Fischer para as regras do Campeonato Mundial. A votação foi muito disputada. Meu amigo coronel Ed Edmondson, que tinha sido diretor executivo da United States Chess Federation (USCF), ou Federação de Xadrez dos Estados Unidos, contou-me sua história nos bastidores do evento, que eu resumi como segue: “A disputa seria acirrada. Os dois lados estavam usando todos os meios possíveis. Os soviéticos estavam torcendo braços e cotovelos e as nações ocidentais estavam fazendo o mesmo. Aquela era a nossa chance de levar o xadrez a novos patamares. A perspectiva de um match de cinco milhões de dólares disputado nas Filipinas, confrontando um americano e um soviético, colocaria o xadrez com firmeza nas capas de jornais do mundo inteiro outra vez. O confronto provavelmente duraria meses. Fazíamos lobby como se não houvesse amanhã. Sem dúvida, não haveria amanhã. “Eu conhecia o Bobby muito bem. Ele queria as regras de Steinitz e acreditava genuinamente que elas eram mais justas para os dois adversários. Ele as queria mesmo antes de jogar contra Spassky, mas como Desafiante ele não tinha chance de mudar as regras. Eu sabia, simplesmente sabia que, se as regras de Steinitz não fossem aprovadas, Bobby renunciaria ou perderia seu título. As apostas eram radicais assim. Antes da votação, eu estava nervoso, porém confiante. Eu achei que ele iria ganhar, mas com uma margem pequena. Perdemos por uma margem muito estreita. Ao que parece, o delegado mexicano mudou seu voto no último instante possível. Um ano depois, uma delegação de Grandes Mestres soviéticos visitou o México em uma turnê de cortesia realizando seminários e simultâneas gratuitas. “Os soviéticos conseguiram sua vitória, mas atrasaram o xadrez em uma década ou mais.”


Lembre-se de que essa votação ocorreu em uma época em que os soviéticos e seus satélites costumavam vencer votações nas Nações Unidas com margens retumbantes. O fato de a disputa ter sido tão acirrada é realmente um atestado de o quanto foi forte o lobby da USCF. O resultado da decisão da FIDE não poderia ter sido mais cataclísmico. A previsão mais terrível se concretizou: praticamente no momento em que a contagem de votos foi anunciada e a moção pela mudança de regras perdida, Bobby declarou sua renúncia como Campeão Mundial de Xadrez da FIDE. Posteriormente, contudo, Bobby declarou que renunciara “apenas” seu título da FIDE e que ainda era Campeão Mundial.

Em vez de aprovar as regras de Steinitz de “precisar vencer dez partidas”, que Bobby queria, os delegados da FIDE buscaram um meio-termo e aprovaram um conjunto de regras de “precisar vencer seis partidas”. Em caso de um empate de cinco a cinco, o match continuaria até que a próxima partida decisiva fosse disputada. As regras de “precisar vencer seis partidas” eram defendidas por José Raúl Capablanca e costumam ser chamadas de “Regras de Londres”. Isso era típico na tomada de decisões da FIDE então e sempre. Dada uma escolha entre “A” ou “B”, os delegados da FIDE invariavelmente aprovavam um plano “C”, o qual era um híbrido entre as duas opções que geralmente sublinhavam e combinavam os piores aspectos das duas opções originais e, ao mesmo tempo, não possuíam qualidades próprias compensadoras.


Naquela época e desde então, eu achava que um match de 24 partidas era mais do que suficiente para determinar o melhor jogador. Eu gostava do sistema de ter que vencer dez partidas pelo aspecto dramático, pois os jogadores teriam que correr riscos para vencer o match, mas a ideia de uma competição “sem data para terminar” me preocupava. Um match deste tipo poderia se estender por meses, possivelmente arruinando o orçamento do patrocinador e também enfadando o público. Os organizadores de um match de dez vitórias poderiam ser financeiramente aniquilados ao fixar um local para a competição. E se o match se decidisse em poucas semanas e o lugar tivesse sido alugado por muitos meses? Inversamente, e se após muitos meses o placar fosse de apenas seis vitórias para um dos competidores? Como estender o contrato ou encontrar um novo local? E como um match realmente longo que durasse muitos meses afetaria o ciclo de três anos? Por princípio, o perdedor do match tinha que entrar no ciclo nos estágios iniciais, mas ele poderia já estar em andamento. Após a renúncia de Bobby em abril de 1975, o Desafiante soviético Anatoly Karpov foi declarado Campeão Mundial por forfeit [falta].


Os apreciadores americanos de xadrez ficaram amargamente decepcionados, sentindo, sem dúvida, como Bobby sentia, que eles e todo o mundo do xadrez tinham sido privados de um duelo excitante. O novo Campeão Mundial, Anatoly Karpov, passou sua carreira tentando reverter a opinião pública de que ele não era um verdadeiro campeão.

A LENDA CRESCE

Apesar da desistência, o interesse em Bobby Fischer era tão palpável que, quando eu joguei no Aberto Americano em 1976 em Santa Monica, correu um falso boato no salão do torneio de que um “homem de barba, possivelmente Bobby” estava no prédio. O salão de jogos ficou praticamente vazio. Esta era uma grande proeza em um evento suíço grande, onde uma sirene com quatro alarmes mal conseguia tirar os competidores de seus tabuleiros. (Lembre-se de que Pasadena, a cidade natal de Bobby, ficava apenas a uma hora de carro de Santa Monica.)

Encontrar uma comparação para ilustrar o impacto da ausência de Bobby é mais do que difícil, mas vou tentar. Atualmente somos abençoados com alguns talentos excepcionais no xadrez no mundo inteiro: Yifan Hou, uma chinesa de 15 anos, é apresentada como futura Campeã Mundial; Parimarjan Negi, da Índia, Sergey Karjakin, da Ucrânia, Teimour Radjabov, do Azerbaijão, Hikaru Nakamura, dos Estados Unidos, Daniel Stellwagen, da Holanda, e David Howell, da Inglaterra, todos se destacam; e, é claro, o mais cotado de todos, Magnus Carlsen, da Noruega. Como é emocionante ver todas essas jovens estrelas competirem e avançarem lentamente rumo às mais altas honrarias. Embora seja difícil reconstituir a época de 1974 e 1975, para colocar o interesse em Bobby em perspectiva, leve embora todas essas promissoras estrelas da atualidade e faça-as declarar coletivamente que estão desistindo do xadrez para sempre. O desapontamento sentido pela ausência de Bobby não poderia ser maior. Eu, por exemplo, fiquei totalmente murcho.


Depois de 1975, tive que me consolar jogando por meio de My 60 memorable games e também ouvindo histórias de colegas que tinham conhecido Bobby pessoalmente. Eis, então, uma lista de “Histórias de Bobby” de que eu sempre gostei. A maioria delas estou compartilhando pela primeira vez...

As duas primeiras são de Robert Byrne, que, além de ser um dos Grandes Mestres mais bem-sucedidos dos Estados Unidos, escreveu para a Gray Lady, o The New York Times, por décadas. Resumirei duas histórias de Byrne como segue: “Foi durante a disputa das Finais dos Candidatos de 1971, em Buenos Aires, com Tigran Petrosian. Eu estava no centro de imprensa preparando minha coluna. Todos os soviéticos estavam lá, olhando para os monitores e analisando o jogo abertamente em uma das mesas centrais. Miguel Najdorf era o centro das atenções e fazia comentários depois de cada lance. Miguel achava que Bobby tinha uma boa posição na sexta partida e então, quase inacreditavelmente, ele fez seu lance, Cc5xd7, trocando seu impressionante cavalo em c5, realmente poderoso, por um dos piores bispos em d7 que uma posição pode ter... “Najdorf quase voou da cadeira. ‘Meu Deus! Ele enlouqueceu!’, ele começou a gritar. ‘Trocar um cavalo desses por um bispo daqueles!’ Najdorf segurou o cavalo para que todos o vissem. ‘Ele não entende nada, nada de xadrez!’ “Os soviéticos praticamente riram e se abraçaram; eles estavam muito contentes com o que todos concordavam ser uma péssima troca. Uma troca que livraria Petrosian do perigo, entende? “Todos olharam para mim, esperando que eu, por ser dos Estados Unidos, tentaria defender a decisão de Bobby, mas eu apenas fiquei em silêncio, explicando que eu tinha uma coluna a escrever e estava ocupado demais para tomar parte naquilo. Secretamente, eu sabia exatamente o que Bobby estava pensando, porque eu tinha analisado com ele muitas vezes. Para Bobby era tudo muito simples. Ele valorizava mais os bispos do que os cavalos. Ponto. Para ele, na posição resultante, seu bispo estava muito melhor do que o cavalo das Pretas. Ele viu que podia centralizar seu rei, bloquear o peão d passado das Pretas e, depois, suas torres e bispo coordenar-se-iam melhor do que as torres e o cavalo, portanto, o jogo estava acabado. Para Bobby, aquela captura de cavalo por bispo era como cravar o último prego no caixão.


“Alguns lances depois da troca, eu estava olhando para o Grande Mestre Alexey Suetin, o técnico de Petrosian, e ele estava de boca aberta e ficando cada vez mais boquiaberto. Quando Petrosian se encontrava prestes a abandonar a partida, seu queixo estava quase na mesa e ele sussurrou: ‘Ele joga de uma maneira tão simples.’ Eu me esforcei muito para me conter, para ser educado e não rir, mas não foi possível. Veja, aquele era o jeito do Bobby jogar. Xadrez clássico simples.”

Existe algo nessa história que me emociona profundamente, a ideia de que o Campeão Mundial tem uma compreensão nitidamente superior a dos outros. Ele tem seus conceitos e com seus lances ele diz: “É assim que eu penso. Refute-me se for capaz”.


A segunda história de Byrne era de 1966:
“Jogamos em Havana na Olimpíada. Os cubanos eram anfitriões maravilhosos. Os momentos mais felizes para mim eram quando Bobby era cortejado. Ele tinha uma suíte ampla bacana e a equipe toda entrava em fila depois da rodada. Bobby reconstituía a partida para nós e nos mostrava como ele havia vencido e por quê. Era simplesmente fascinante. Sua análise era incrível. Era como se os lances fluíssem das pontas de seus dedos. Suas mãos eram grandes e as peças apenas se mexiam, praticamente dançando, e era tão especial. Daí, um desastre se abateu sobre nós... Bobby estava mostrando um jogo à equipe e então fez uma pausa e começou a rir, e ficou rindo e rindo cada vez mais alto. Tentando falar, ele disse: ‘E agora vocês sabem o que o pato jogou? Ele jogou... vocês não vão acreditar...’ Bobby moveu a peça e sumiu debaixo da mesa num ataque de riso convulsivo. “A equipe se pôs a estudar a posição freneticamente. Não conseguíamos entender a risada de Bobby e queríamos compartilhar. Mas, maldição. O lance que seu adversário fez parecia totalmente sensato e eu estava tendo dificuldade para entender onde estava a refutação. Foi então que Bobby se recuperou de seu ataque de riso e conseguiu sair do chão e voltar para o tabuleiro. Ele fez seu lance. Droga! Estava bem debaixo do nosso nariz e era tão óbvio. Eu não tinha visto. Mas quando eu compreendi instantaneamente como aquilo minava totalmente a estratégia do adversário, eu também tive que começar a rir. Uns segundos depois outra pessoa começou a rir, e logo todos estavam rindo também. Mas eu te digo, Yasser, naqueles poucos segundos em que não vi o lance, fiquei em pânico total. Eu não queria que Bobby pensasse que eu também era um pato”.

O lado negro de analisar xadrez com um gênio. Você não quer ser chamado para o ringue para explicar um lance. Quem conheceu “Don” Miguel Nadjorf, o Grande Mestre argentino nascido na Polônia, sabe que ele era um homem de paixões. Veloz para tomar uma decisão em um décimo de segundo, Miguel me contava histórias sobre os campeões por horas a fio. Eu não entendia por que alguém não entrevistava Miguel por algumas horas, pois ele era um ótimo contador de histórias. Eu adorava nossos encontros. Ele tinha inúmeras histórias sobre Bobby, das quais muitas me esqueci, infelizmente. Miguel tinha opinião sobre tudo e, a que segue, discutimos muitas vezes e demoradamente. Estávamos em um restaurante em Buenos Aires jantando nosso “lomo” de costume quando Miguel me disse, “Jasser!” (em espanhol, o “y” muitas vezes é pronunciado como um “j”, e Miguel gostava mais do som de Jasser do que de Yasser; assim, para Miguel – e somente para ele – eu fiquei sendo Jasser) “Você sabe que o Bobby não tem estilo.” Agora, este é o melhor gambito de abertura para uma conversa entre enxadristas que eu já vi. “Quê? Eu não te entendo, Miguel. O que você quer dizer?” perguntei. As opiniões de Miguel eram sempre defendidas com vigor e ele se comprazia em me fisgar e me puxar para discussões animadas e emotivas. Ele era um homem apaixonado que amava demais o xadrez. Explicou sua teoria, sobre a qual penso com frequência. Ela dizia o seguinte: “Quando você me mostra uma partida de Capablanca, eu penso, ‘A-ha, Muito legal. Muito suave. Lances lógicos. Jogo bonito. Deve ser uma partida de Capablanca!’ Depois, você me mostra outra partida e eu penso, ‘Meu Deus! Quem é esse bandido  jogando com as Brancas? Olhe estes sacrifícios descuidados, ousados. E esse lance calmo, também! Incrível! Perdendo duas peças e ele para para fazer um lance desses. E ele venceu! Mas claro, me dou conta, este é Tal.’ E outra partida. ‘Eu não consigo entender o que o jogador está fazendo. Ele está tomando precauções extraordinárias e seu adversário nem sequer está atacando. Agora ele manobrou suas peças para trás e depois para frente outra vez em boas casas. Ele melhora sua posição mas não fez nada concreto. Meu Deus! O adversário está sufocado e simplesmente morto! Onde estava o erro? É claro, este é Petrosian.’ Veja você, Jasser! Eu reconheço o estilo. Mas quando eu analiso uma partida de Bobby, eu não vejo nada. Não tem estilo. Bobby jogava com perfeição. E a perfeição não tem estilo.”


A perfeição não tem estilo. Um conceito muito interessante, se você parar para pensar. Ficamos horas discutindo e, no fim, eu achei a teoria de Miguel muito convincente. Hoje, com o advento dos computadores, essa discussão sobre se a perfeição tem um “estilo” poderia ser retomada. Eu sempre gostei de jogar Blitz e, atualmente, jogo on-line. Às vezes, depois de uma vitória, meu adversário me acusa furiosamente de estar usando um computador e coloca meu nome no “ignorar” sem saber quem eu sou. Quando analiso a partida que venci, ela pode parecer “estilosa”, mas alguns dos lances eram, na verdade, os segundos melhores. As duas coisas combinam? Alguns usam o termo computer-like (semelhante a computador) para descrever um lance, uma estratégia ou o final de uma partida. É esta última parte que eu acho interessante. A expressão computer-like tem uma forte conotação de precisão e perfeição. Mas os computadores vencem de uma maneira complicada. Eles não trocam quando têm vantagem material, uma tendência humana natural e uma prática bem estabelecida para reduzir o potencial de caos. Os computadores empilham complicações em cima de mais complicações, sabendo como vão se sair. Esse jogo dinâmico muitas vezes faz com que os computadores vençam com mais rapidez do que os humanos, que trocam quando têm vantagem material. E, garantindo que fiquem dentro de seus limites, os computadores nunca cometerão um erro devido à fadiga. O que os humanos vêem como “complicações” são, para um computador, simplesmente a demonstração de um teorema.

Existe estilo em tal perfeição? Bobby venceu muitas partidas complicadas e sem dúvida parecia deleitar-se com táticas, mas ele também ficava feliz ao simplificar para uma vitória técnica. Ele jogava com perfeição? Muitos de seus colegas achavam que sim, embora análises computacionais posteriores tenham demonstrado que mesmo Bobby às vezes não jogava perfeitamente. Mas perfeição e estilo estão nos olhos de quem vê e, em um sentido real, o jogo de Bobby transcendia o estilo. Na década de 1970, eu costumava viajar para a Big Apple para jogar em eventos e encontrar adversários para jogar Blitz. Inclusive visitei a famosa “Flea House” perto de Times Square antes de me decidir pelo Manhattan Chess Club como meu refúgio predileto para jogar Blitz. Quando estava na cidade, eu tentava me encontrar com Asa Hoffman, um conhecido mestre de Blitz que sabia muitas histórias sobre Bobby, e passávamos horas juntos enquanto ele me contava sobre como ludibriava Bobby, fazendo apostas que nem mesmo Bobby podia superar. “Ele me dava vantagem de cinco para um em dinheiro e também vantagem do empate. Sem vantagem de tempo. Nós dois jogávamos com cinco minutos cada um. Ele vencia nos placares, eu ganhava o dinheiro.” Assim Asa descreve suas sessões.


Em uma de minhas visitas, Asa me apresentou a Jackie Beers. Jackie usava barba e tinha uma aparência desleixada naquele dia. Contudo, ele foi apresentado como um confidente íntimo de Bobby. Sentamos para uma boa conversa e Jackie me contou que recentemente tinha recebido uma chamada: “Bobby me perguntou se eu podia emprestar-lhe 50 pratas”. Eu fiquei surpreso. “Eu disse que, se eu tivesse, certamente lhe mandaria, mas eu disse a verdade, que eu não tinha os 50 dólares”. Eu acreditei que Jackie estava dizendo a verdade quando disse que não tinha os 50 dólares, mas poderia mesmo ser verdade que Bobby era tão pobre que precisava pedir dinheiro emprestado a amigos que mal podiam atendê-lo neste modesto pedido de ajuda? Parecia totalmente incoerente. Como seria possível? Estávamos falando de um homem que podia ganhar milhares de dólares em um único dia jogando em torneios, participando de simultâneas ou mesmo dando uma palestra. Seria tão simples e, no entanto, Bobby preferia pedir dinheiro emprestado? Viver uma vida de miséria? Mas que diabos estava acontecendo? Eu fiquei totalmente confuso.

Durante uma de minhas visitas a Nova Iorque eu fiquei com uma família. O marido era um médico suíço, o “Dr. Rudy”. Ele se interessava muito por xadrez pois seus dois filhos jogavam. Ele fizera contato com Claudia e queria ajudar Bobby a sair de sua aposentadoria auto imposta. Ele agendou um encontro com Bobby e pagou 5 mil dólares adiantados pelo privilégio de conhecer e falar com ele. As conversas deveriam ser totalmente sigilosas e não haveria fotos. O Dr. Rudy embarcara na aventura e saiu com uma impressão extremamente positiva. Bobby estava pronto, disposto e até ansioso para jogar, mas insistia nas regras de Steinitz para jogar em matches. Infelizmente, ele não estava interessado em participar de torneios.

No decorrer dos anos, conheci numerosas pessoas que tinham feito o mesmo que o Dr. Rudy, pagando cinco mil dólares pelo privilégio de um encontro. A maioria desses encontros parecia ter ido muito bem e o pessoal saía confiante. Confiantes ou não, tudo deu em nada.

HAVIA ALGUMA ESPERANÇA?

Minha história predileta sobre “pagar pelo privilégio de conhecer Bobby” é a de Arnfried Pagel. O Sr. Pagel era um industrial no ramo de cimentos que se fixou na Holanda, perto de Beverwijk. Por seu grande interesse em xadrez, ele patrocinava um clube local, o Koningsclub. Pouco tempo depois, o Sr. Pagel decidiu que seu clube estava destinado a tornar-se o Clube Campeão de Xadrez da Holanda e, assim, saiu em busca de “mercenários”, Grandes Mestres que ele contrataria para jogar em seu esquadrão. Naquela época, levava tempo para promover um clube para o nível mais alto da liga, mas o Sr. Pagel estava ansioso para que seu time vencesse o Campeonato da Liga “antes do tempo”. Ele resolveu contornar o processo de qualificação usual e propôs um desafio direto a Volmac, o Campeão dos Clubes Holandeses. A equipe do Volmac aceitou o desafio, e fui contratado pelo Sr. Pagel, por indicação de Lev Alburt, para jogar para seu Koningsclub. O Sr. Pagel foi um anfitrião maravilhoso, e, para minha sorte, o resultado do match de dois dias dependia do resultado de minha segunda partida contra Raymond Keene. Se eu vencesse, o Koningsclub venceria o match de desafio, e foi exatamente isso o que aconteceu. O Sr. Pagel estava nas alturas e me convidou, assim como Victor Korchnoi, da equipe do Volmac, para jantar e jogar bridge. Naquela noite, o Sr. Pagel nos contou a seguinte história, que também resumi assim:
“Depois que comecei a patrocinar o Koningsclub, comecei a me dar conta de que seria um verdadeiro sonho para mim se Bobby Fischer jogasse ao menos uma partida pela equipe. Escrevi para Claudia e fiz a oferta de pagar 100 mil dólares a Bobby para  jogar uma única partida. Como estávamos nos níveis mais baixos na época, o adversário de Bobby seria um verdadeiro amador no xadrez escolhido de forma totalmente aleatória. Recebi uma resposta afirmativa de que Bobby estava disposto a conversar sobre a minha oferta, mas gostaria de me encontrar para tratar dos detalhes. Haveria uma “taxa de ingresso” para o público? A partida seria filmada? E assim por diante. Eu teria que pagar 50 mil dólares para me encontrar com Bobby para acertar os detalhes e voar para Pasadena. Eu concordei sem hesitar.
“Em meu primeiro encontro com Bobby tudo correu bem. Conversamos sobre muitos detalhes e chegamos a um acordo geral. Passei algumas horas com ele no primeiro dia e ele me elogiou, dizendo que desfrutara imensamente de minha companhia e me perguntou se poderíamos nos encontrar novamente no dia seguinte, para que ele tivesse tempo de pensar sobre nossa conversa e os principais pontos. É claro que eu concordei. Encontramo-nos de novo e parecíamos ter feito muito progresso. Isso continuou, mas eu tinha um sentimento muito desconfortável de que, apesar de ser, no meu entendimento, uma oferta muito generosa, de alguma forma Bobby estava procurando um motivo para dizer não. Se esse fosse o caso, minha viagem teria sido em vão e eu voltaria para a Holanda de mão vazias. E o pior é que eu não tinha absolutamente nenhuma prova de que eu sequer havia me encontrado com Bobby. Uma das condições de nosso encontro foi a de que não haveria câmeras nem fotos nem comentários com a imprensa sobre o nosso encontro. Eu tinha concordado. Mas o que fazer agora? Eu não queria voltar de mãos totalmente vazias.


“Por fim, decidi contratar um detetive particular. Sua tarefa seria tirar uma foto de Bobby comigo de longe, sem que ele o soubesse. Eu evidentemente manteria a foto em total sigilo e só a usaria como prova de que havia realmente me encontrado e discutido com ele a ideia de ele jogar uma par-tida para o clube.
“Durante os encontros, nossas conversas estavam ficando presas a detalhes. Bobby estava fazendo perguntas para as quais eu não tinha respostas e a possibilidade de chegar a um acordo estava diminuindo. Faríamos uma última tentativa e um terceiro encontro final, pois eu precisava voltar para a Holanda. Combinamos de nos encontrar em um determinado banco de um parque ao meio-dia. Eu estava lá pontualmente. Nada de Bobby. Passados quinze minutos, comecei a duvidar de que estava no lugar certo. Nos encontros anteriores, Bobby tinha sido sempre pontual. Assim, eu estava sentado em um banco de parque começando a ter dúvidas, quando ouvi um ‘psiu’ vindo das árvores atrás de mim. Isso continuou e eu olhei para as árvores e vi Bobby.
‘Bobby! O que você está fazendo nas árvores? Saia daí’, eu disse. ‘Não’, disse Bobby. ‘ Venha você aqui’. Daí eu fui até as árvores onde Bobby estava se escondendo e começamos a sussurrar em um tom conspiratório. ‘Por que estamos nos escondendo assim?’, perguntei. Bobby parecia muito agitado e olhava em volta. ‘Estou sendo seguido!’, ele disse. “É claro que eu imediatamente compreendi que Bobby tinha descoberto que estava sendo seguido pelo detetive particular que eu tinha contratado para tirar nossa foto. Eu não poderia dizer uma palavra sem me entregar. De algum modo, andamos pela fileira de árvores e despistamos nosso perseguidor. Posteriormente, eu consegui minhas fotos, mas Bobby nunca jogou pela minha equipe. Depois desta viagem, eu entendi que Bobby não jogaria xadrez outra vez.”

A história de Pagel, que ele me contou em maio de 1982, embora engraçada, trouxe uma grande decepção. Embora dez anos tivessem se passado desde que Bobby tinha jogado uma partida de xadrez em público, todos tínhamos esperança de que ele retorna-ria à arena do xadrez, mas a história de Pagel parecia por um fim a essa perspectiva para sempre. Afinal, o que poderia ser mais simples? Jogar uma única partida na Liga Holandesa contra um amador com rating de 1200 por uma remuneração de cem mil dólares. Nenhum título mundial em jogo; nenhum intermediário soviético com o qual tratar; nenhuma competição endossada pela FIDE; nenhum adiantamento nem intervalos prolongados ou postergações; apenas duas pessoas disputando uma partida vespertina em um clube local. Caramba, eles podiam até dividir uma rodada de cerveja durante a partida, que é uma prática comum. Se aquela oferta não foi aceita, que esperança poderia haver para um evento mundial mais sério? O relato de Pagel me fez afundar completamente.


Mais um detalhe da história da Pagel que vale a pena contar. Ele havia combinado com Claudia de se encontrar com Bobby por uma taxa de 50 mil dólares. Essa taxa incluía o acordo de que Bobby tornar-se-ia membro honorário do Koningsclub. Quando chegou a hora de Pagel pagar a Bobby seus honorários, ele apresentou cinco maços bem organizados com 10 mil cada um. Bobby, que gostou de Pagel, devolveu três dos maços, explicando que 20 mil eram suficientes. Bobby tinha uma personalidade complicada. Se ele gostasse de você, ele abriria mão de seus honorários e seria generoso; se não gostasse, independentemente da quantidade de dinheiro envolvida, ele simplesmente recusaria, inclusive, ofertas de um milhão ou mesmo de cinco milhões de dólares. Por que eu ainda nutria esperanças de um retorno de Bobby ao tabuleiro? Ao longo do tempo, minhas vagas esperanças tinham sido nutridas pelos Grandes Mestres Eugene Torre das Filipinas e Miguel Quinteros da Argentina. Ambos eram amigos íntimos de Bobby e, mais importante, seus confidentes. Em diversas ocasiões e lugares, eles pareceram ter se encontrado com Bobby por alguns dias de troça e diversão e, evidentemente, um tabuleiro de xadrez era inevitavelmente puxado. Bobby ainda estudava a Chess Informant e deliciava-se em desmontar a análise de Karpov (que Bobby chamava depreciativamente de “Kar-piche”) e do jovem Kasparov. Bobby começava: “Está bem, vejamos agora como o dito Campeão Mundial, o Sr. Kar-piche joga xadrez... Agora nesta posição, que Kar-piche diz equilibrada. É mesmo? O que será que ele faria diante deste lance? Talvez o dito Campeão Mundial quisesse abandonar a partida?” “Oh, e isso é bom. Aqui ele diz que está ganhando. Interessante. Depois deste lance, não podemos concordar em um empate?”

Eu jurei tanto a Eugene quanto a Miguel não contar nada a ninguém e regozijava-me por ter obtido sua confiança. Nunca revelei o que eles me mostraram, mesmo quando estava explodindo de vontade de fazê-lo. É claro que eu já me esqueci das muitas posições que eles mostraram, onde Bobby desmantelava a análise do “dito Campeão Mundial”, mas uma coisa estava clara: Bobby tinha encontrado defeitos na análise dele. Defeitos indiscutíveis. “Por que ele estava estudando as partidas de Anatoly Karpov tão atentamente se não estava determinado a arrasá-lo no tabuleiro?”, eu pensava. Depois, eu refletia sobre o relato de Pagel e me perdia. Quero dizer, ali estava um patrocinador perfeito, um industrial nascido na Alemanha, disposto a pagar milhares de dólares e a aceitar todos os termos e as condições que Bobby exigisse, uma pessoa que fez uma amizade com ele e, mesmo assim, não foi possível chegar a um acordo. E o que pensar de Jackie Beers e a necessidade de pedir 50 dólares emprestados? Era muitíssimo confuso!


Em outra ocasião, Miguel Quinteros contou-me uma história fantástica que era mais ou menos assim. Ele e Bobby combinaram de visitar Las Vegas e curtir um pequeno feriado. Bobby não gostou da ideia de se hospedar em um dos grandes cassinos e preferiu ficar em um hotel fora do circuito de cassinos. Eles dividiram um quarto duplo e saíram para jogar nas máquinas caça-níqueis, comer num buffet e assistir a algum show. Miguel explicou que tinha várias malas Samsonite grandes, onde levava seus ternos caros feitos sob medida, enquanto Bobby tinha uma mala leve e uma pequena bolsa, semelhante a uma pasta executiva, que ele mantinha chaveada e escondida debaixo de sua cama. Essa pasta especial continha as valiosas revistas em quadrinhos mexicanas de Bobby, que ele adorava, além de alguns suplementos vitamínicos. Certa noite, quando voltaram ao quarto, perceberam que haviam sido vítimas de um assalto. Os ladrões não haviam levado os ternos caros de Miguel, e a única coisa que estava faltando era a pequena valise chaveada de Bobby, escondida debaixo da cama. Bobby choramingou: “O cara rouba minhas revistas e não toca nos teus ternos? Qual é a dele?” Miguel ri disso há anos. Uma história final de Miguel Quinteros. Um de seus amigos mais queridos e próximos é seu conterrâneo Jorge Rubinetti. Eles participaram de um torneio round robin em Buenos Aires, em 1970, com Bobby. A partida estava marcada para a tarde e, perto do meio-dia, Miguel ouviu alguém batendo na porta de seu quarto no hotel. Era Jorge, seu amigo de infância. Em algumas horas, ele teria que encarar o grande Bobby Fischer. “Por favor”, disse Jorge, “você precisa me ajudar a me preparar! Hoje eu jogo de Pretas contra Bobby e você precisa me dizer o que preciso fazer.” E, então, o que o querido e íntimo amigo Miguel aconselhou a seu maior amigo, que era como um irmão, em seu desesperado momento de necessidade? Miguel sorriu, meneou a cabeça e disse: “Jorge, deixe-me explicar. Este cara vai te arrasar. Ele estudou a vida inteira para derrotar patos como nós. Você não tem chance. Não há nada que eu possa te aconselhar para impedir o inevitável. Por favor, não vamos perder tempo e vamos ter um belo almoço juntos. Depois você pode me mostrar como perdeu.” Nós todos tínhamos sido informados de que Bobby tinha uma grande capacidade para trabalhar duro no xadrez, que ele estudava até tarde da noite e passava a maior parte de suas horas de vigília lendo livros e revistas de xadrez. A história a seguir foi contada por outras pessoas, mas eu posso tranquilamente confirmar sua autenticidade. Ela me foi contada por Allen Kaufman. Allen era há muito o diretor executivo da American Chess Foundation (ACF), que hoje é a Chess-in-Schools Foundation. Nos velhos tempos, a ACF começou como uma fundação para apoiar os esforços de Samuel Reshevsky em sua luta pelo Campeonato Mundial. Vou resumir a história de Allen: “Eu conhecia Bobby muito bem e o via sempre pela cidade de Nova Iorque, em clubes e em torneios. Nós nos dávamos bem. Na época em que ele estava se preparando para seu confronto com Spassky, ele andava carregando seu famoso “livro vermelho”. Este era a edição da série alemã (Weltgeschichte des Schachs Volume 27) que continha as partidas de Spassky (mais de 350 partidas). Era o tipo de brincadeira que Bobby adorava fazer com as pessoas, inclusive comigo. Ele nos alcançava o livro e dizia: ‘Escolha uma partida’. Eu abria o livro e escolhia uma. ‘Diga-me o número da partida, o nome do adversário e onde a partida foi disputada’. E eu dizia. Bobby então reconstituía a partida e os movimentos exatos. Você podia literalmente pôr o dedo sobre a página, acompanhar os lances nos diagramas e Bobby lhe dizia quando ela iria terminar. Era realmente a coisa mais incrível. Não esqueça que os jogadores às vezes repetiam um ou dois lances para ganhar tempo no relógio, e Bobby acertava o placar. Só posso explicar isso como uma memória fotográfica, pois Bobby tinha memorizado o livro inteiro.”
Pessoalmente, isso me pareceu uma verdadeira proeza. Eu mal consigo me lembrar de minhas próprias partidas, muito menos memorizá-las lance por lance. Fazer isso com as de outro jogador? Fala sério. De jeito nenhum!

A VISÃO DE MUNDO DE BOBBY

Bobby havia enviado a Victor Korchnoi uma série de livros que Victor me emprestou e que eu li integralmente. Esses presentes de Bobby incluíam The Elders of Zion, The Protocols of  Zion e cinco outros títulos, todos falando soturnamente sobre os Illuminati. Todos tinham a mesma mensagem básica: o mundo estava sendo vítima de uma conspiração universal de banqueiros, muitos dos quais judeus. Esses livros eram mal escritos, com numerosas frases grafadas com letras maiúsculas para enfatizar as principais ideias e coisas do tipo. Os livros professavam que uma Conspiração Mundial de Bancos (judia) estava determinada a instituir um governo totalitário no mundo que nos escravizaria a todos (através de dívidas).

Os livros enredavam várias instituições, incluindo os Rothschild, o Banco da Inglaterra, o Federal Reserve (privado), a fundação da Receita Federal, as Nações Unidas, o Fundo Monetário Internacional, a Comissão Trilateral, o Grupo Bilderberg, a sociedade secreta Skull and Crossbones de Yale, os maçons e assim por diante.

Os fatos históricos eram descritos de modo a torná-los necessários para que as metas dos Illuminati fossem alcançadas. Todo grupo internacional era visto com desconfiança, e todos eram guiados pelo desejo de nos converter em escravos da dívida e assim controlar o mundo e toda a humanidade. No extremo mais profundo da conspiração, os líderes desse complô haviam criado uma máquina do tempo que lhes permitia se-rem transportados para momentos cruciais na história para mudar o desfecho. Era uma descoberta muito deprimente. Havia muitas passagens que Bobby havia obsequiosamente sublinhado para que Victor pudesse ver a verdade. Ai meu Deus. Depois de ler esses livros durante várias semanas, duas coisas me vieram à cabeça imediatamente. Primeiro, e mais importante, como alguém poderia levar esses livros a sério? Segundo, como eu podia me unir aos Illuminati? Afinal, os livros pintavam um quadro bastante sombrio da inevitabilidade do êxito do complô. Se não podemos derrotá-los, podemos nos unir a eles. Ser o zelador, digamos, da América do Norte, não parecia ser uma batida ruim (bad beat),* já que de qualquer maneira estávamos todos condenados. Na época, atribui a culpa pelas concepções políticas, econômicas e de mundo de Bobby a seu tipo particular de credo cristão fundamentalista – um sistema de crenças da proximidade do dia do juízo final que aguardava a vinda dos cavaleiros do apocalipse, como profetizado pelo Novo Testamento, para pisotearem todos nós. Esse credo, casualmente, é muito favorável a Israel e à expansão sionista. Ficou claro que, depois que rompeu com sua Igreja, Bobby inverteu suas concepções sobre Israel, assim como sobre o povo judeu. Por suas posteriores transmissões de rádio das Filipinas publicadas na internet, descobrimos que as visões de Bobby sobre a “conspiração judia” haviam se fortalecido e ele falava com amargura sobre elas, sobre seu país e sobre o povo dos Estados Unidos. Era fisicamente doloroso ouvi-las. Em algum ponto na metade da década de 1980, deparei-me com um panfleto a respeito do qual já havia lido. Ele se chamava I Was Tortured in the Pasadena Jailhouse!, da autoria de Bobby Fischer, o Campeão Mundial de Xadrez. Se alguma vez li um grito de ajuda, ali estava ele. O copyright era de 1982 e o panfleto foi publicado por Bobby Fischer. O preço de capa era um dólar. Os parágrafos são precedidos por títulos em negrito. Os títulos contam a história completa do que aconteceu:
Assalto a banco... Sério... Preso... Brutalmente algemado... Falsa prisão... Humilhado... Sufocado... Descrição do assaltante... Completamente nu... Nenhum telefonema... Cela do horror... Isolamento e tortura... Hospital psiquiátrico... Passando fome e frio... Colchão interno... Refeição e quentinha... Sem água... Tira doente... Indecência da polícia... Ameaças... Mesmas perguntas e respostas... Crimes da polícia... Telefonema... Impressões digitais... Assinado sem ler... Nenhuma acusação por escrito... (Nenhum) Dinheiro de volta... Simulação... Perguntas não feitas... Fatos verídicos...

O panfleto foi assinado com um fac-símile por “Robert D. James”. Abaixo da assinatura havia uma explicação: “Robert D. James (profissionalmente conhecido como Robert J. Fischer ou Bobby Fischer, o Campeão Mundial de Xadrez)”.


Quem lesse esse panfleto não poderia deixar de querer se envolver na vida de Bobby e salvá-lo de si mesmo e de seu ambiente. Basicamente o que aconteceu é que ele estava caminhando em um belo bairro de Pasadena tarde da noite. Um assalto a banco havia ocorrido mais cedo naquele dia. A polícia estava atenta para pessoas que parecessem deslocadas. Quando a polícia parou para interrogá-lo, Bobby assumiu um ar desafiador e citou os direitos constitucionais na Quinta Emenda para não ser incriminado. Ele foi detido. Resistiu, recusando-se a cooperar, e as coisas foram piorando. Onde estavam os amigos de Bobby? Por que eles não estavam tentando ajudá-lo? Não seria possível convencê-lo a fazer terapia? O panfleto era, em minha opinião, a gota que faltava. Eu não conseguia imaginar Bobby saindo de seu isolamento auto imposto. Mais do que tudo, esse panfleto expõe o mito de que Bobby derrotara o império soviético sem ajuda. Sem ajuda, quando confrontado pela polícia em Pasadena, ele fez um tolo de si mesmo e acabou preso. Se ele tivesse dito simplesmente: “Eu sou Bobby Fischer. O presidente Nixon declarou-me um herói nacional. Eu derrotei os russos no Campeonato Mundial de Xadrez de 1972 e conquistei o título para os Estados Unidos”, os policiais provavelmente teriam parado imediatamente, surpresos, pediriam um autógrafo e ofereceriam uma carona até sua casa. Bobby sem dúvida apresentava muitos comportamentos autodestrutivos e às vezes era seu pior inimigo.

Minha próxima história sobre Bobby foi contada por Bessel Kok. Como pano de fundo para esta história, vamos começar em Dubai durante a Olimpíada de Xadrez de 1986. O então Campeão Mundial, Garry Kasparov, e Bessel Kok, presidente da Corporação SWIFT, com sede em Bruxelas, decidiram fundar a Grandmasters Association (GMA), ou Associação de Grandes Mestres. Fui convidado para ser um dos diretores fundadores – tarefa que aceitei com entusiasmo. Em fevereiro de 1987, tivemos nossa primeira reunião de diretores, em Bruxelas, e a GMA foi fundada. Os primeiros anos foram de considerável sucesso e a GMA criou sua própria série de eventos da “Copa do mundo”. Muitos se referem ao período de 1987 a 1991 como a época de “ouro” para o xadrez. Bessel era presidente da GMA e meteu na cabeça que gostaria muito que Bobby se associasse à GMA. (As taxas eram de 20 dólares por ano.) Ele convidou Bobby para visitar Bruxelas e, a seguir, está minha sinopse da história de Bessel:


“Convidei Bobby para vir a Bruxelas, onde nos encontraríamos e conversaríamos sobre a possibilidade de ele se associar à GMA, além de falarmos a respeito dos projetos de xadrez nos quais ele estivesse interessado. Bobby veio e ficou em minha casa por volta de uma semana. Ele estava muito preocupado com a possibilidade de ser reconhecido e de a imprensa fazer alarde. Por isso, mais ou menos por medo de ser descoberto, ele basicamente ficava em casa, o que me deixou maluco, pois eu queria sair e mostrar-lhe a cidade. Quando falávamos sobre a GMA e possíveis projetos de xadrez, as conversas não davam em nada e nada iria acontecer.

“De repente e surpreendentemente, bem no fim de sua estadia de uma semana, Bobby resolveu que queria ir a um bar, o que ele chamava de um “bar de garotas”. Por sorte, eu conhecia um. Fomos até lá e pedimos uma garrafa de champanhe cara. Sem problemas, eu estava feliz de estar fora de casa. Logo Bobby estava conversando com uma moça e eu com outra. Nós estávamos de costas um para o outro, mas eu prestava atenção na conversa que estava acontecendo atrás de mim.

“Era o tipo de conversa trivial que se tem nestas ocasiões, até que a mulher fez uma pergunta de parar o coração: ‘Então, com o que você trabalha?’ Tenho certeza de que o champanhe teve um efeito suavizante, mas eu senti Bobby empertigar-se e endireitar as costas.

‘Eu sou um Grande Mestre Internacional de Xadrez!’, Bobby disse sem rodeios. Fiquei surpreso com sua admissão, mas a mulher respondeu com entusiasmo. ‘É mesmo? Eu também jogo xadrez! Eu sei o nome de muitos Grandes Mestres. Qual é o seu?’ “Neste momento, eu tive que interromper minha conversa para me virar e ouvir o que estava acontecendo atrás de mim. Tinha se tornado muito interessante. Bobby parecia genuinamente encantado com o fato de que a mulher sabia alguma coisa de xadrez.

‘Bom, meu nome é Robert James Fischer. Eu sou o Campeão Mundial de Xadrez!,’ exclamou Bobby, com um tom resoluto. ‘Ora vamos’, disse a mulher. ‘Pare de fazer piadas. Você não é Bobby Fischer! Ontem tivemos Dali, e agora é o Fischer’, disse ela fazendo beicinho. ‘Mas olha, pague-me outra taça de champanhe e eu te chamarei de Bobby pelo resto da noite.’ “Bobby estava evidentemente chocado porque a mulher não acreditara nele, enquanto eu ria sem parar. Bobby começou a vasculhar sua carteira e os bolsos do casaco tentando encontrar algum documento que provasse sua identidade. Ele passara anos tentando esconder sua identidade e, no momento em que desesperadamente queria provar quem era, não podia. Mesmo quando tentei socorrê-lo dizendo: ‘Sim, este é real-mente Bobby Fischer’, recebemos ambos um olhar incrédulo. Foi uma das experiências mais engraçadas de minha vida. Fischer não podia provar quem ele era”. Bessel, que tem um temperamento tranquilo e ri com frequência, sempre conta essa história com risadas entusiasmadas. Por sua forma de contar, a gente imagina o que ele deve ter rido. A história de Bessel sempre me faz rir sempre que ele ou eu a reconto. É a história pela qual eu gostaria de me lembrar de Bobby, em que ele tem orgulho de ser quem é e quer provar sua verdadeira identidade, em vez de se esconder por trás da máscara que fez para si mesmo. Para mim, Bobby é um enigma; uma pessoa mítica. Um herói que se tornou uma pessoa amarga que desdenhava do mundo. Um homem que lutava contra demônios reais e imaginários. Um homem que investia contra moinhos de vento. Mas o pior, muito pior, ele foi um homem de extraordinário potencial que não se realizou. Bobby poderia ter sido o Mohammed Ali do mundo do xadrez. Poderia sozinho ter levantado o esporte e o colocado na cena mundial. Ele recusou esse papel heróico e preferiu fugir para seu mundo particular isolado. A perda para o mundo do xadrez foi simplesmente incomensurável.

O RETORNO DE BOBBY

Bobby era, evidentemente, um deus do xadrez. Se tivesse continuado a jogar, ninguém sabe o que teria alcançado, que disputas e torneios teria vencido, se teria alcançado um inexpugnável recorde de matches e torneios e se teria a supremacia por uma década ou mais.

Mas, em 1992, Bobby chocou o mundo. Ele saiu da aposentadoria, voltando a confrontar Boris Spassky. Foi um match sobre o qual Garry Kasparov, entre muitos outros, falou mal, declarando que as partidas eram de má qualidade e exemplos de “xadrez de velhos”. Foi dito que Bobby era de outra época e nunca deveria ter voltado a jogar, pois seu jogo prejudicou sua condição legendária. Surpreendentemente, essa foi a linha adotada pela Chess Life, a publicação oficial da USCF. Os comentaristas pareciam especialmente ávidos por criticar os lances escolhidos. Eu visitei o match, encontrei-me com Bobby por um dia e escrevi um livro sobre isso, No Regrets (Sem Arrependimentos).


Vamos colocar esse confronto de 1992 em seu devido contexto, certo? Bobby não havia movido um peão em público por 20 anos. Dizer que ele estava “enferrujado” seria dizer pouco. Seria como se um ciclista como Lance Armstrong se ausentasse por duas décadas e depois anunciasse que iria competir no Tour de France. Impossível. Então, o que eu poderia esperar? Eu esperava que vencesse, mas que o faria de uma maneira desleixada. Em vez disso, eu desafio a todos a reconstituir a Primeira Partida daquele confronto. Foi incrível! Não apenas uma pérola, foi uma partida excepcional. Todos os lances de Bobby estavam corretos. Perfeitos! Eu estava estupefato. Depois, vejamos a Segunda Partida. Mais uma vez, em cerca de 60 lances, Bobby jogou xadrez perfeito. Simplesmente perfeito. Ele construiu uma posição vitoriosa, mas na sexta hora de jogo concedeu a Boris uma pequena escotilha de fuga, que Boris descobriu e evitou a derrota. Incrível. Bobby voltou ao xadrez e jogou seus primeiros 100 lances de maneira perfeita. Vou repetir isso: de maneira perfeita. Quem sabe o que ele poderia ter alcançado se estivesse ativo por vinte anos, mas aqueles 100 primeiros lances em 1992 me convenceram de que ele tinha potencial para ser o melhor de todos os tempos.

Uma vez conversei com meu pai sobre Bobby no começo dos anos oitenta. Eu tinha falado sobre minha admiração por Bobby e meu pai demonstrou uma indiferença quase veemente. Surpreso, perguntei por que ele tinha uma opinião tão forte e negativa sobre ele. Parafraseando: “Bobby venceu o Campeonato Mundial de Xadrez. Ele lutou e venceu uma vez. Uma vez. Eu já fui pára-quedista. Qualquer idiota é capaz de se jogar de um avião. Você passa a ser respeitado quando o faz pela segunda vez, pois você conhece seus medos e o que precisa enfrentar.” Palavras fortes e reveladoras, sem dúvida.

ENCONTRANDO BOBBY FISCHER

Fui à Iugoslávia para uma parte do confronto de Fischer e Spassky de 1992 e me encontrei com Bobby e passei um dia com ele. Aquelas poucas horas juntos foram, de meu ponto de vista, uma experiência muito agradável. Eu estava eufórico por conhecê-lo e fico grato a ele pelo tempo que passamos juntos: um dia inteiro. Eu o guardarei com carinho. Bobby agradeceu-me pessoalmente por ter viajado até Sveti Stefan para o confronto, e lamentava que eu fosse o único Grande Mestre americano presente. Ele achava que seu retorno não tinha recebido a aclamação que merecia. Eu conto isso como pano de fundo para o retorno que recebi, por fofocas, de que Bobby parecia estar furioso comigo porque eu tinha escrito No Regrets e assim tinha me beneficiado com o retorno dele ao xadrez. Eu me reuni às legiões de outras pessoas que lucraram com ele. Embora No Regrets não tenha me trazido nem fama nem fortuna, fiquei orgulhoso pelo livro e recebi um elogio fantástico de Boris Spassky, que adquiriu 47 exemplares. Este era claramente o caso de “maldito se fizer e maldito se não fizer”. Entristece-me pensar que Bobby tinha má opinião sobre mim antes de falecer. Seria tolice escrever novamente sobre o dia que passei com Bobby aqui, pois eu contei isso em detalhes em No Regrets. Em retrospectiva, eu diria que duas coisas se destacam em nosso encontro. A primeira foi como Bobby me elogiou por Cinco Coroas (Five Crowns). Aquele livro fazia uma análise profunda de todos os 24 jogos do confronto entre Kasparov e Karpov em 1990. Em mais de duzentas páginas de análise, Bobby encontrou dois erros. Erros que eu também tinha descoberto depois da publicação. Ele conhecia os jogos e onde eu havia me perdido. Eu fiquei impressionado.

A segunda coisa foi que, antes de me encontrar com ele em sua suíte, tanto Eugene Torre quanto Svetozar Gligoric me disseram que Bobby estava enfezado comigo. Eu tinha escrito uma coisa na Inside Chess de que ele não tinha gostado. Eu me referi a ele como “o fantasma de Pasadena”. Bobby se queixou, dizendo: “Eu não sou um fantasma, eu sou um homem”. Assim, decidi lhe pedir desculpas e receber o perdão dele. Quando fomos nos cumprimentar, segurei a mão dele enquanto pedia desculpas e não a soltei antes que ele dissesse: “Vamos esquecer isso tudo.”

Com isso fora do caminho, Bobby estava animado, falava rápido e ria facilmente. Compartilhávamos histórias de Bruce Lee, o artista marcial que ambos admirávamos. Para ler o relato completo de meu encontro com Bobby, o leitor deve ler No Regrets. Depois de 1992, nunca mais me encontrei nem falei nem mantive correspondência com Bobby. Um livro que vou sempre valorizar, mesmo com a capa despedaçada, é My 60 Memorable Games de Bobby. Existem histórias para todas as partidas disputadas, e uma delas tocou meu senso de humor.

Arthur Bisguier relata o seguinte incidente no Aberto do Estado de Nova Iorque, realizado em Poughkeepsie, em agosto/setembro de 1963. A passagem a seguir foi extraída de The Art of Bisguier, Selected Games 1961-2003 (Milford, 2008): “Jogando contra Bobby no Aberto do Estado de Nova Iorque naquele ano, percebi que ele estava demorando demais para jogar. Daí vi que ele tinha pegado no sono. Em alguns minutos a seta em seu relógio iria cair e ele perderia por tempo. Não é assim que gosto de ganhar partidas, torneios ou títulos. Por isso cometi o que alguns chamaram de maior erro do torneio. Eu acordei o Fischer. Bobby bocejou, deu seu lance, bateu no relógio e me derrotou. Essa acabou sendo a Partida 45 em My 60 Memorable Games. Depois eu soube que Fischer tinha ficado acordado até tarde na noite anterior jogando Blitz para ganhar dinheiro.”

Eu acho que nunca tive um adversário que tenha adormecido durante uma partida, mas alguns deles certamente chegaram perto disso. Às vezes fico preocupado que isso possa ser um efeito dos aspectos posicionais de meu estilo. Fico pensando em como eu teria agido. Acredito firmemente que devo lembrar meus adversários de apertar o relógio quando eles esqueceram de fazê-lo, além de lembrá-los que seu tempo se esgotou (caso eu tenha certeza disso). Mas, se Bobby adormecesse, eu poderia achar que o coitado precisava de uma hora de descanso...


No fechamento deste capítulo, eu coloco Robert James Fischer como o terceiro maior jogador de todos os tempos. Ele foi um gigante que se dedicou ao xadrez e nos deixou um legado de partidas de tirar o fôlego. Receio que ele será lembrado mais por ter abandonado o xadrez prematuramente do que pelo que contribuiu para o esporte. No xadrez, recordamos nossas derrotas muito mais do que nossas vitórias. A ausência de Bobby foi a maior perda que o xadrez sofreu desde Paul Morphy. A estrada para a recuperação ainda está em andamento. Existe um vídeo islandês sobre Bobby Fischer que eu achei muito bom: faça uma busca na internet por “Documentary Fischer VS Spassky”.

sábado, 20 de agosto de 2016

DESTRUINDO MITOS

Anatoly Karpov, 1975-1985
Por Yasser Seirawan



Este capítulo é dedicado ao Campeão Mundial de 1975 a 1985 Anatoly Yevgenyevich Karpov, um enxadrista de poderes extraordinários.


Enquanto o nome de Spassky está ligado ao de Fischer, o nome de Karpov está inextricavelmente vinculado não a um, mas a dois grandes enxadristas: Robert James Fischer e Garry Kasparov. Anatoly, ou “Tolya”, foi, afinal, o vilão que recebeu a coroa do título do Campeonato Mundial de Xadrez de Bobby Fischer por manter desistência. Para fãs como eu, sabíamos que, se Bobby tivesse disputado o match de 1975, ele teria vencido. Depositar uma coroa de louros nos ombros de Anatoly foi um insulto para os fãs do xadrez e uma traição do título. Para milhões de fãs dedicados do xadrez, o título “Campeão Mundial” deveria significar também o de “melhor jogador do mundo”. Eu estava convencido de que, em 1975, Bobby era o melhor enxadrista do mundo. Pouco me importava o que algum delegado nacional presente em uma Assembléia Geral da FIDE pudesse dizer sobre o assunto. A única opinião que contava – ao menos para mim – era a minha.



Quem é o dono do título?

A concessão do título mundial a Karpov em 1975 levantou uma questão profunda e extremamente perturbadora para o mundo do xadrez. Quem “é o dono” do título de “Campeão Mundial”? Antes de Mikhail Botvinnik, o público certamente reconhecia os Campeões Mundiais como “detentores do título”, mas eles eram donos dele? O título não era uma propriedade que se pudesse passar para outra pessoa. Quando Emanuel Lasker tentou em 1920 conceder o título a seu Desafiante, José Raúl Capablanca, sem jogar, o público não queria saber daquilo e recusou-se a aceitar a decisão de Lasker. O match foi disputado em Havana após longos atrasos. Antes de começarem as partidas, Lasker insistia em ser tratado como o Desafiante. Como deixa claro em sua correspondência, ele já tinha entregado o título a Capablanca antes de o match ter começado. Agora, pelo menos em seu modo de ver, ele estava jogando para reconquistar a coroa perdida. O público não compartilhava do ponto de vista de Lasker. Lasker era o Campeão Mundial e reconhecido como tal pelo público até o dia em que abandonasse o título em um match disputado. Mas ele não era um título ou propriedade que ele pudesse ceder ou entregar a um Desafiante, digno disso ou não. O Campeão Mundial possuía o título, como um zelador, mas não era dono dele. Quando Alekhine morreu como detentor do título, um novo evento era necessário. Ele tinha que ser organizado de tal forma que o público aceitasse que a disputa criava legitimamente um digno novo Campeão Mundial ou pelo menos alguém que tivesse feito o suficiente para poder-se dizer: “Bem, dos Candidatos, ele está perto o suficiente.” Perto o suficiente para reivindicar ser o melhor enxadrista do mundo.



O verdadeiro Campeão Mundial poderia jogar, por favor?

Da morte de Alekhine enquanto ainda era Campeão Mundial, avançamos rapidamente no tempo até Anatoly Karpov em 1975. Anatoly certamente havia realizado o que as regras exigiam para tornar-se Desafiante. Mas o sentimento geral das pessoas era que havia um abismo entre o Desafiante e o Campeão e que Bobby era simplesmente muito superior. Diferentemente de Alekhine, Bobby não tinha falecido e, embora Anatoly estivesse perto, ele não era a coisa de verdade. Ele não estava perto o suficiente. E aí estava a dificuldade: em 1975, Anatoly Karpov era um Campeão no papel e o público, certamente o público ocidental, simplesmente não estava a fim de ser enganado pela FIDE. Assim, iniciou-se uma estranha interação de dinâmicas que duraria duas décadas, se não mais.


“Todo mundo” (isto é, fãs como eu) sabia que Bobby Fischer era o melhor enxadrista do mundo, mas enquanto ele se mantivesse fora da competição nada havia a debater. O “verdadeiro Campeão” não estava jogando e não mostrava nada. Já Anatoly queria desesperadamente ser aceito como um genuíno Campeão Mundial, além de ser reconhecido como o melhor enxadrista do mundo. Sua missão era simples: se ele queria ser tratado ou considerado o Campeão Mundial, teria que jogar contra os melhores enxadristas nos melhores torneios e vencer. E vencer com frequência. E o fez. Anatoly era o melhor enxadrista do mundo entre os Grandes Mestres ativos.

O primeiro teste de Anatoly como “Campeão defensor da FIDE” foi em 1978, quando enfrentou novamente Victor Korchnoi, desta vez sancionado como Campeão Mundial. Venceu o match com a estreita margem de 6 vitórias contra 5 derrotas e 21 empates. No final do match, Anatoly estava minguando, perdendo três das últimas cinco partidas. Sua vitória foi por muito pouco e não dissuadiu seus críticos, mesmo que relutantemente admitissem que derrotar Victor Korchnoi, o segundo enxadrista mais bem classificado, não era pouca coisa. A margem de vitória foi dolorosamente pequena. Outro ciclo de três anos veio e se foi; Anatoly manteve-se um Campeão Mundial ativo, vencendo ou empatando em primeiro lugar em praticamente todos os eventos de que participou. Em 1981, ele enfrentou Victor Korchnoi pela terceira vez em um match para decidir o título mundial. Dessa vez o resultado foi um desempenho decisivo de 6 vitórias, 2 derrotas e 10 empates. Anatoly dominou o mais curto match pelo Campeonato Mundial na história do Pós-guerra. Um novo Karpov, versão 3.0, nasceu. O Anatoly Karpov do período de 1981 a 1984 era um enxadrista que o mundo raramente tinha visto antes. Esse não era um Campeão Mundial do tipo “primeiro entre iguais” – esse era um Campeão Mundial que tínhamos esperado que Bobby Fischer se tornasse: um Campeão Mundial de credenciais indiscutíveis, bem superior a seus colegas. Anatoly jogou em todos os principais eventos e venceu a maioria. No período de 1977 a 1985, um novo tipo de evento estava nascendo: o evento de Categoria 15 – um evento tão forte que, na história do xadrez, somente um punhado tinha sido realizado; eventos de Categoria 15 tornaram-se competições anuais e Karpov venceu ou dividiu o primeiro lugar em praticamente todos eles.

Todo enxadrista tem uma opinião sobre o que teria acontecido em um hipotético confronto entre Bobby e Anatoly em 1975. Eu não sou diferente. Bobby teria vencido por 10 a 4 com aproximadamente 20 empates ao longo do caminho. Mas, em 1984, Anatoly Karpov tinha evoluído para um formidável Campeão Mundial e teria derrotado qualquer Desafiante, inclusive, em minha avaliação ao menos, Bobby. É realmente inacreditável como Anatoly estava bom durante esse período. Em minha opinião, Anatoly Karpov é o segundo melhor enxadrista que o mundo já teve.

Mas Karpov sofreu um destino cruel. Teve que lutar com um adversário que ninguém podia superar – a sombra de Bobby Fischer. Por maiores que fossem suas realizações, ninguém podia saber com certeza se Karpov era o verdadeiro Campeão, pois ele jamais jogou contra seu maior rival. Isso foi uma tragédia para o mundo do xadrez, para Anatoly e, possivelmente, também para Bobby.

Apesar disso, Karpov compilou um histórico em torneios e matches que jamais será igualado, nem mesmo pelo maior enxadrista de todos os tempos, Garry Kasparov. Existe uma ironia verdadeira no segundo golpe sofrido por Karpov pelos Deuses do Xadrez – ele era o Campeão Mundial quando Kasparov entrou em cena, e teve que lutar não apenas com uma sombra que não jogava, mas com um adversário real que jogava. Os dois disputaram um número estarrecedor de matches. Antes de nos voltarmos para a rivalidade entre Karpov e Kasparov, não estarei exagerando ao enfatizar que Karpov era muito mais do que a ponte entre Fischer e Kasparov – ele era um enxadrista incrivelmente poderoso por seu próprio mérito e os enxadristas devem ser eternamente gratos por ele ter enfrentado seus rivais com tamanha determinação.


O infame Match de 1984

Vamos fazer uma pausa para compreender a grandeza de Karpov. Em 1984, quando defendeu seu título, dessa vez contra um novo Desafiante, Garry Kasparov, no famoso primeiro match cancelado, Karpov liderava com cinco vitórias a zero. Pare para pensar sobre o fato por um instante. Garry Kasparov, que ascenderia para tornar-se o maior enxadrista de todos os tempos, estava sendo esmagado por 5 a 0 pelo Anatoly Karpov de 1984. Nossa, esta é uma distância com seus rivais que somente Bobby Fischer na safra de 1971 foi capaz de demonstrar.

Muitos especialistas, inclusive eu, sugeriram que, se Anatoly tivesse vencido o match de 1984 por 6 a 0 (desconsiderando os empates), Kasparov teria sido psicologicamente destruído e não teria se tornado o Kasparov que conhecemos hoje; que, sem dúvida, impulsionado por tão imensa vitória, Karpov teria mantido seu título por mais dez anos e continuaria sendo o maior jogador de todos os tempos. Este é meu modo de ver: Karpov vence o match de 1984 com uma vitória esmagadora de 6 a 0, Garry nunca se recupera totalmente de tamanho desastre, e Karpov permanece no topo do trono por mais uma década. Depois de um total de 20 anos de supremacia, ele terminaria sua carreira como o maior enxadrista de todos os tempos. Anatoly chegou perto assim desta história de grandeza no xadrez.

Mas não foi isso o que aconteceu. O que aconteceu é simplesmente surpreendente. Minha única descrição é “sobre humano”. Perdendo de 5 a 0 após 27 partidas, Garry Kasparov encontra recursos dentro de si que nem sabe que existem. Enfrentando a mais horrível provação possível para um profissional do xadrez, Kasparov luta com cada pingo de determinação que pode reunir. Ele não pode perder uma única partida. Ele vai empatar e empatar – para sempre se necessário – mas não vai perder. Ele não pode perder. O confronto não é mais um jogo ou um duelo esportivo – em vez disso, transcendeu o xadrez e transformou-se em uma luta entre a vida e a própria morte. A perda de uma única partida significa a morte de uma carreira. Kasparov deve ficar com seu adversário, aguentando dia após dia, suportando o que de melhor Karpov tem a oferecer. Nenhum dos enxadristas está muito interessado em correr riscos. Karpov quer uma derrocada de 6 a 0. Com a Partida 32, o pesadelo de Kasparov termina: é sua primeira vitória naquele match. Excepcional. A ameaça de perder de maneira desonrosa acabou. Caso Karpov agora vença o match, Kasparov terá o consolo de ao menos uma vitória.



Mais uma vez, a ação defensiva de “não dever perder nenhuma partida” continua. Karpov é incapaz de levar o match até a linha de vitória. Depois de cinco meses e 46 partidas, o match continua parado em 5-1. Os organizadores e jornalistas estão ficando exaustos e impacientes. Alguns repórteres foram colocados em Moscou desde antes do início das partidas e permaneceram por seis meses. Os quartos de hotel tornaram-se lares; as vozes de entes queridos no outro lado das linhas de telefone estão mudando; os orçamentos estouraram e ninguém sabe ao certo o tamanho do prejuízo. Subitamente, o match interminável toma um rumo totalmente novo: Kasparov vence, consecutivamente, as Partidas 47 e 48. O placar do match é de 5 a 3 e, pela primeira vez em meses, as coisas ficaram interessantes. Um turbilhão de atividades acontece e os boatos são muitos: diz-se que Karpov está exausto; existe uma sugestão de médicos não identificados de que a saúde dos competidores poderia estar ameaçada; diz-se que os organizadores estão considerando mais uma mudança de local; existe a possibilidade de um adiamento de um mês como intervalo oficial antes da retomada do match; as autoridades da FIDE estão cogitando o cancelamento do match, programando um novo confronto com um número definido de partidas. Em suma, os boatos corriam, e ninguém sabia ao certo o que aconteceria. De qualquer forma, para quando estava programada a Partida 49?

Nenhuma decisão da magnitude de cancelar o match de 1984/85 é tomada apenas por uma razão. Há sempre uma multiplicidade de causas para esse tipo de decisão e para o que acontece. Talvez jamais saibamos todos os fatores e a dinâmica. O que realmente sabemos é que o presidente da FIDE, Florencio Campomanes, tomou uma decisão de longo alcance: ele cancelou o match “sem resultado” e convocou um novo match de 24 partidas com um placar redefinido em zero a zero. O mundo do xadrez ficou em pé de guerra.

Muitas cargas de caneta foram gastas sobre o cancelamento, mas minhas opiniões são agnósticas. Não resta dúvida de que o match tinha ido muito além do que toda pessoa sensata poderia esperar. Cinco a seis meses para um evento esportivo? Os limites máximos do extraordinário há muito haviam sido ultrapassados. De todas as pessoas envolvidas no match, Campomanes deveria ter compreendido que uma medonha possibilidade como a de um match infindável era real. Ele tinha sido o organizador do confronto de 32 partidas em Baguio City entre Karpov e Korchnoi em 1978 que terminou em 6 a 5. Aquele match, parecido com uma maratona, estava começando a testar a paciência dos organizadores quando também chegou-se a uma súbita e furiosa conclusão: Korchnoi venceu três das últimas cinco partidas, mas perdeu a partida que Kasparov não perderia: a partida final.

Campomanes sabia que as regras de “precisar vencer seis partidas” tinham sido adotadas em 1975 como uma forma de apaziguar as exigências de Fischer para um match de “precisar vencer dez partidas”. Na época do confronto de 1984-1985, essas regras tinham perdido sua utilidade, pois tinham sido colocadas em vigor para atrair e tirar Bobby Fischer da aposentadoria e aquele gambito tinha falhado há muito tempo. Era hora de abolir aquele sistema e retornar ao formato de 24 partidas para o qual os organizadores poderiam fazer um orçamento adequado. O match cancelado de 1984/85 forçou essa decisão racional.


Mitos e lendas

Já deve estar claro para o leitor que Campeões Mundiais são o material de lendas. As impressionantes habilidades de todo Campeão Mundial, de Steinitz a Kasparov, prestam-se à criação de mitos. Talvez sempre tenha sido verdade que os próprios Campeões Mundiais desempenharam um papel na criação de seus próprios mitos, mas a mitologia em torno de Fischer, Karpov e Kasparov atingiu níveis nunca vistos.Examinemos primeiramente o mito de Kasparov no confronto de 1984-1985.


O mito do Match Roubado

Quando o primeiro match Karpov-Kasparov foi cancelado, com o placar a favor de Karpov, a reação de Kasparov foi muito diferente do que talvez você tenha imaginado. Surpreendentemente, o condenado, Garry Kasparov, e seus defensores no Ocidente criticaram violentamente as ações de Campomanes, rotulando-as de “Dia da Vergonha”. Em uma descrição mais sinistra, Kasparov vê Campomanes como um amigo íntimo e (mais sombriamente) talvez até como um parceiro de negócios de Karpov. (Nunca foram apresentadas provas de quaisquer transações comerciais mútuas.) Campomanes, fomos informados, “obedeceu ordens” (provavelmente da KGB – aqueles c***lhas!) ou cancelou o match para “salvar” Karpov e seus acordos comerciais mutuamente lucrativos de uma derrota/colapso catastrófico! Sem dúvida, bilhões estavam em jogo.

Vamos pensar sobre estas alegações por um instante. Afora a conjectura quanto à motivação de Campomanes, é possível argumentar convincentemente que foi Kasparov, e não Karpov, quem mais sofreu com o término do match? Eu acho que não – a decisão de Campomanes de cancelar o match servia a Kasparov perfeitamente. Ele receberia um novo match, uma planilha limpa, por assim dizer; o presente placar deficitário de 5 a 3 foi apagado. Dia da Vergonha? Vamos ser absolutamente claros: que tal um “Dia da Comemoração”? E estourar o espumante. Não podia ter sido melhor para Kasparov. Inversamente, a decisão de Campomanes foi terrível para Karpov. Sua liderança anterior de 5 a 0 tinha se evaporado, e sua liderança presente de 5 a 3 também foi apagada. Percebendo o óbvio, Karpov queria que o match continuasse, alegando que não estava exausto e que quaisquer declarações em contrário eram falsas. Não senhor, ele estava com todo o gás e ansioso para brigar.

Não sou médico e evidentemente não tive a chance de examinar Karpov para determinar seu estado de saúde quando o match terminou. Sua alegação de que ele estava em forma é tão improvável de ser verdadeira quanto as alegações de Kasparov de que o match foi cancelado para salvar Karpov da derrota certa. Evidente-mente, o match  teve um efeito adverso em Karpov, assim como ocorreu em seu exaustivo match contra Korchnoi em 1978. Mas as chances de Karpov perder três partidas contra vencer uma eram com certeza pequenas. Na época do cancelamento, Kasparov estimou que sua chance de vencer o match de 1984/85 caso ele continuasse era de uma em três. Eu acho isso muito otimista. Em minha opinião, as chances de vitória de Kasparov eram no máximo de 25%, o que significa 75% de chances de que ele teria perdido. Embora Kasparov ainda sustente sua hipótese do “Dia da Vergonha”, acusando “Karpomanes” (uma mistura dos nomes de Campomanes e Karpov) de ter cooperado com a Federação de Xadrez da URSS para salvar seu homem, é realmente hora de deixar a questão em suspenso. Embora eu discorde com a estimativa de Kasparov sobre suas chances, vamos dar a Garry o benefício da dúvida e aceitar seus 33% de chances de vencer. Isso significa 66% de chances de perder e, assim, quem se beneficiou mais com a decisão do cancelamento?


Recentemente, li um artigo de Kasparov na New In Chess Magazine (2008, número 5, páginas 62-70). Referindo-se à Partida 48, ele escreveu: “Eu acho que esta partida não foi somente a melhor que joguei em cinco meses, mas também a melhor do match como um todo.” Aqui Garry demonstra um pendor pela história revisionista, talvez oriundo de seus primeiros anos na União Soviética. Ao que parece, Kasparov, depois de fazer uma apreciação mais profunda e objetiva do match, chegou a uma conclusão atordoante: as Partidas 47 e 48 foram duas das melhores partidas produzidas em todo o match! Se, como sugerido por Garry, ambos os jogadores jogaram um xadrez de extraordinário alto nível naquele momento, deve ter sido por causa do aquecimento das 46 partidas... Mas onde isso coloca a alegação de Garry em 1985 de que Karpov estava exausto e de que, se ele era incapaz de continuar, deveria abandonar o match?

Bem, se aceitarmos este revisionismo, peço a mesma oportunidade de também re-visar minhas opiniões. Dê-me um novo Karpov em plena forma e eu aumento minha estimativa de 75% de uma vitória de Karpov se o match tivesse continuado para 80 ou 90%. Se o Anatoly Karpov de 1984, jogando o melhor xadrez de sua vida, precisava ganhar apenas uma partida antes de perder três em um match no qual os empates não contam, sinto-me em terreno firme com minha estimativa de 80%. Karpov era o melhor enxadrista do mundo em 1984-1985 e, certamente, ninguém podia dar-lhe uma vantagem de 3 a 1. Qualquer coisa podia ter acontecido, mas vamos manter os pés no chão...

O resto, como se diz, é história. Kasparov venceu o match seguinte, tornando-se o mais jovem Campeão Mundial na história. Ele passaria a dominar o xadrez durante os vinte anos seguintes, como descobriremos nos capítulos a seguir.

Com demasiada frequência, olhamos a vida com as lentes de nossos próprios olhos, deixando de considerar as opiniões de nossos opositores e se sua opinião é justa ou não. Muitas vezes já me perguntei o que Garry poderia ter dito se os papéis fossem invertidos e se sua liderança de 5 a 3 tivesse sido apagada. Neste caso, sua hipótese sobre o “Dia da Vergonha” teria sido justificada. Na realidade em que a maioria de nós vive, a hipótese de Garry me parece absurda, mas ela tomou proporções mitológicas sem um bom motivo. Afinal, ele tornou-se Campeão Mundial no final de 1985.


O mito de Fischer como Davi contra Golias

Vamos corajosamente afirmar o óbvio: todos nós somos tanto santos como pecadores. Anatoly Karpov não era nem é diferente de todos e de cada um de nós. Ele tem seus pontos bons e ruins, seus altos e também seus baixos. Tudo faz parte de nossa comédia humana. Ninguém é perfeito.

Para quem pensa que vou pôr Karpov nas alturas, este capítulo será uma surpresa, e para quem pensa que, como fã de Bobby Fischer, vou jogar Anatoly na lama, errou também. Serei claro: eu tenho grande admiração por Anatoly. Suas partidas e realizações são incríveis e dignas de nosso maior respeito. Ele com certeza recebeu muita ajuda ao longo do caminho, mas frequentemente a ascensão de “programa de esportes” de Karpov no Campeonato Mundial é contrastada com o mito de Fischer como o lobo solitário. O público do xadrez há muito é alimentado com a fábula de que Bobby Fischer desafiou sozinho o rolo compressor do xadrez soviético e, em reverência ao gênio individual, derrotou o sistema esportivo socialista soviético construído durante décadas. Que evocativo. O gênio solitário defendendo o direito contra a força; liberdade individual versus formação sistêmica em camisa de força; Bobby lutando contra todo um aparelho governamental para arrebatar o Campeonato Mundial de Xadrez. Puxa! Visto deste ângulo, um brilhante enredo de cinema. Hollywood não poderia fazer melhor – deve haver um filme aqui em algum lugar. Quero dizer, não é legal isso? Legal, mas nonsense ["sem sentido", "contra censo" ou "absurdo" é uma expressão inglesa que denota algo disparatado, sem nexo].

Para pôr as coisas em perspectiva, é verdade que, do ponto de vista do xadrez em si, Fischer era em grande parte autodidata. Aquilo de que ele carecia da formação formal institucionalizada que caracterizava a “escola soviética de xadrez”, compensava com uma determinação obstinada e trabalho árduo. Ele estudava as partidas dos melhores enxadristas soviéticos e lia a literatura de xadrez russa avidamente. No fim, Bobby “sovietizou-se mais do que os próprios soviéticos”, e fez isso apenas com modesto auxílio de seus colegas.

Mas isso é apenas parte da história. Vamos começar com o fato mais simples: no ciclo de três anos que Bobby venceu, ele não se qualificou. Bobby, “sem ajuda de ninguém”, retirou-se do ciclo porque boicotou o Campeonato dos Estados Unidos de 1969, que casualmente era também um qualificador zonal e a primeira etapa no ciclo do Campeonato Mundial. A lenda poderia ter terminado ali: “Desculpe-nos imensamente, Bobby, mas você está fora dessa. Você pode tentar novamente no próximo ciclo de três anos, o que começa em 1975. Tchau. Cuide-se bem”.

Foi a decisão de Pal Benko, o qual tinha se qualificado no Zonal dos Estados Unidos, de retirar-se e ceder sua vaga de qualificação em favor de Bobby que permitiu que ele competisse no Interzonal que o colocou no caminho do estrelato. Vou repetir: Bobby estava fora e, somente porque Pal Benko foi capaz deste fantástico gesto esportivo, Bobby pôde crescer.

Assim como a tentativa de Lasker de dar seu título a Capablanca sem jogar, não estava sequer claro que Benko tinha o direito de transferir sua vaga de qualificação a um enxadrista de sua escolha. Se Pal queria se retirar do ciclo, não seria o jogador no Zonal, que era o próximo na fila, a subir para substituir Pal? Na verdade, todos os enxadristas americanos no Zonal teriam que concordar em deixar que Bobby tomasse a vaga de qualificação de Pal e abrir mão de seus direitos e reivindicações. Além disso, o Comitê Central da FIDE também teria que aprovar essa troca. As regras eram claras: os melhores jogadores do Zonal se qualificavam para as etapas seguintes da disputa. Jogadores ausentes não recebiam tratamento preferencial. Foi nesse comitê que as autoridades da USCF trabalharam imensamente para assegurar os votos necessários que permitiram que Bobby jogasse.

Escreveu-se que Pal recebeu dinheiro para ceder seu lugar. Isso não é verdade. Pal retirou-se pelo mais simples dos motivos: ele achava que Bobby tinha uma genuína chance de se tornar Campeão Mundial, certamente uma chance melhor do que ele mesmo. Ele estava disposto a ceder seu lugar, mas somente para Bobby. Assim, só para começar, Bobby precisou e recebeu ajuda de Pal Benko. Se Pal tinha esperanças de remuneração, só havia uma: se Bobby avançasse bastante no ciclo, talvez ele pudesse ser um técnico ou assistente.

Depois, todos os participantes no Zonal dos Estados Unidos de 1969 tinham que concordar com a decisão de Benko de trocar com Bobby. Se Benko queria sair, tudo bem, essa era sua decisão; mas o camarada atrás de Benko que teria se qualificado teria que abrir mão de seu direito. E assim por diante. Nenhum desses enxadristas foi pago para ceder seus direitos. Eles todos queriam ver Bobby jogar – vê-lo jogar e vencer.

Podemos ver que, fora do tabuleiro, Bobby precisou de ajuda para ter sua chance no Campeonato Mundial, e a recebeu. E a história não termina aí.



Depois de ter garantido o lugar de Bobby no ciclo através da aprovação do Comitê Central da FIDE, a USCF veio em seu auxílio e o apoiou sem reservas. O diretor executivo da USCF, o coronel Ed Edmondson, dedicou a maior parte de seu tempo e energia para garantir que Bobby recebesse todo o apoio de que precisava. Para citar o ex–diretor executivo da USCF Al Lawrence: “Leroy Dubeck, presidente da USCF de agosto de 1969 a agosto de 1972, lembra que, quando assumiu, concordou com o então diretor executivo Ed Edmondson de concentrar todos os recursos da federação de xadrez em um único objetivo monumental – dar a Fischer a chance de vencer o Campeonato Mundial. Para esse propósito, os dois inclusive redirecionaram todo o dinheiro obtido com sócios vitalícios em vez de investi-lo.” (Chess Life, setembro de 2007, página 25.) Junto com Leroy Dubeck e Ed Edmondson, havia Fred Cramer, também da USCF, que ajudou Fischer com acordos e numerosas questões jurídicas.

Os Grandes Mestres Bill Lombardy e Lubosh Kavalek estavam lá para oferecer seus serviços da forma como pudessem, assim como o Mestre Internacional Anthony Saidy, amigo íntimo de Bobby. Havia Lina Grumette, uma senhora de idade adorável, figura materna para Bobby, a qual, da mesma forma, dedicou-se a apoiá-lo. Por muitos anos na adolescência, Bobby hospedou-se em sua casa, onde ela devotou-se ao bem estar dele. Existe uma história famosa de Lina no cinema com Bobby em Reykjavik em um momento crítico no match de 1972, dizendo-lhe resolutamente para apenas jogar e vencer. Havia torrentes de pessoas, organizadores, fãs e jornalistas ansiosos para ajudar Bobby, desejando-lhe sucesso, instigando-o a seguir adiante.

Houve uma profusão de apoio de todos os cantos. Se Bobby tivesse feito um apelo público aos fãs do xadrez em 1975 e dito: “Por favor, preciso de sua ajuda. Envie 50 dólares para minha verba de treinamento e ajude-me a manter meu Campeonato Mundial. Com seu apoio, eu prometo competir e, se a competição não acontecer, devolverei sua doação...”, suspeito que eu, um jovem de 15 anos com pouco dinheiro, e um milhão de outros fãs de xadrez dos Estados Unidos teríamos feito a doação. E de bom grado. Bobby teria uma reserva de guerra de 50 milhões de dólares quase da noite para o dia, tamanho era o “apoio” que ele tinha. A própria sugestão de que Bobby fez o que fez sozinho é um mito criado pela mídia e desvaloriza os imensos esforços das muitas pessoas sem as quais Bobby teria continuado sendo uma possibilidade para o mundo do xadrez. Para colocar a questão sem rodeios: sem ajuda, Bobby não chegou a parte alguma. Ele se retirou do ciclo. A verdade simples é que Bobby às vezes era seu próprio pior inimigo e isso lhe custava muito caro: às vezes ausentava-se, às vezes retirava-se e geralmente sabotava suas próprias campanhas. Foi a assistência de algumas pessoas-chave em momentos decisivos que ajudou a empurrar, convencer e instigar Bobby a encontrar o seu destino. Não se esqueçam do telefonema do Dr. Henry Kissinger que fez Bobby embarcar no avião para a Islândia. Sem ajuda? Por favor!


O mito de Karpov e da igualdade de condições

Bobby Fischer foi o pior pesadelo da máquina de xadrez soviética que se tornou realidade. Eles precisavam de um Karpov e, parafraseando um velho ditado, se Karpov não tivesse existido, teriam que inventá-lo. Inventaram? Karpov era um grande enxadrista mas, como porta-bandeira do xadrez soviético e do Estado soviético, ele foi plenamente apoiado com o máximo de privilégios possível. Nenhum enxadrista jamais desfrutou tanto as doações oferecidas pelo Estado e pela FIDE quanto Anatoly Karpov. Poderia tê-lo feito sozinho? Karpov superou a sombra de Fischer sendo um “Campeão ativo” que, merecidamente, deixava que suas peças e peões falassem por si? Como veremos, Anatoly usufruiu de todas as vantagens possíveis e depois de algumas que jamais tinham sido imaginadas antes.

O “apoio do Estado” a Anatoly parece ter começado desde o início de sua carreira. Depois o “trem da alegria” só acelerou. Ele obteve permissão para se mudar com a família para Moscou – permissão não concedida sem um bom motivo na União Soviética. Vamos recapitular os simples fatos do ciclo de três anos de 1972-1975, que o levou ao título por forfeit [falta]:

1. Anatoly qualificou-se no Zonal soviético.
2. Disputou no Interzonal soviético de 1973 em Leningrado, empatando invicto em primeiro lugar com Victor Korchnoi.
3. Disputou três matches de Candidatos, derrotando Polugaevsky pela primeira vez em sua cidade natal de Moscou.
4. Derrotou Spassky em Leningrado na Semifinal.
5. Derrotou Korchnoi na Final de Candidatos de 1974 em Moscou por 3 a 2, com 19 empates. A cidade natal de Korchnoi era Leningrado, e Karpov morava em Moscou. O match foi em Moscou.
6. Por fim, obtendo o título em 1975 por muita desistência graças às maquinações da Federação de Xadrez da URSS na Assembléia Geral da FIDE. A USCF estava no outro lado das maquinações, apoiando o Campeão Mundial Bobby Fischer.

Em parte porque o Interzonal de que participou foi realizado em Leningrado e porque seus adversários nos torneios de Candidatos (Polugaevsky, Spassky e Korchnoi) eram todos enxadristas soviéticos (na época), aconteceu que Anatoly Karpov tornou-se Campeão Mundial sem jogar uma única partida fora da União Soviética; ou, melhor dizendo: ele jogou todas as suas partidas na Rússia, e a maioria de suas partidas, incluindo a final de Candidatos, foi disputada em sua cidade, Moscou. Como eufemisticamente diriam os britânicos, “isso ajuda”.

Ainda posso ver Bent Larsen queixando-se de que, para uma fase do prolongado ciclo de três anos, o Interzonal em que ele seria obrigado a competir seria disputado dentro da URSS. Fico pensando em como Larsen se sairia se todo o ciclo de três anos tivesse ocorrido em Copenhague.

Serei absolutamente claro: não estou fazendo acusações de fraude ou trapaça. Na época, Karpov já estava entre os dez melhores do mundo. Estou apenas dizendo que seus esforços contaram com o total amparo e apoio da Federação Soviética de Xadrez e sem esse apoio ele poderia não ter sido bem-sucedido.

Depois que Karpov foi declarado Campeão Mundial da FIDE e a questão do empate em 9 a 9 de Fischer estava sendo debatida, a questão era: de que vantagem, se houver alguma, o Campeão deveria usufruir? As autoridades da FIDE decidiram dar ao Campeão Karpov uma imensa vantagem: uma cláusula de revanche. Caso Karpov perdesse um match pelo título, ele teria direito a uma revanche – precisamente o direito que Botvinnik exerceu com êxito antes de ser tirado dele por ser uma vantagem muito grande. O direito a uma revanche era simplesmente uma imensa vantagem para o Campeão Mundial e certamente muito maior do que qualquer coisa que Bobby tivesse pedido. Da perspectiva de Karpov, isso era muito natural. Por que ele iria se opor? Realmente, por quê? Com sua ascensão ao trono do xadrez, Anatoly Karpov tornou-se uma figura de liderança nos círculos do esporte soviético e da cultura soviética. Ele trouxera de volta a coroa que tinha sido levada pelo arrivista Bobby Fischer. Foi premiado com a Ordem de Lênin e duas vezes eleito Esportista Soviético do Ano – uma realização digna de consideração em um país que produziu Campeões Mundiais em praticamente todos os esportes. Na época do match de 1978 com Victor Korchnoi, e especialmente no de 1981, a influência de Karpov na URSS era muito forte. Seu adversário, um desertor, oficialmente um criminoso do Estado soviético aguardando julgamento, era o perfeito contraste para Anatoly. Ele empunhava a bandeira, preservava a honra da URSS e mantinha a coroa. Os Comissários tinham que ficar absolutamente encantados com Anatoly Karpov – ele era o perfeito “herói nacional da pátria.”

Karpov nunca jogou contra Fischer, mas três vezes derrotou o demonizado Victor Korchnoi, de maneira justa e honesta. Ou não? Em 1976, Korchnoi desertou da União Soviética enquanto disputava um torneio em Amsterdã. Deixou para trás uma esposa e um filho na União Soviética. Ele implorou ao Estado soviético que permitisse que seus familiares saíssem e se unissem a ele no Ocidente, mas sua solicitação foi rejeitada muitas vezes. Em entrevistas à imprensa, Korchnoi explicou que sua família estava sendo deliberadamente mantida como “refém” pelo Estado soviético e que, na véspera de suas partidas contra Karpov, seu filho Igor foi mandado para um campo de prisioneiros, como de fato aconteceu em 1981.

É aqui que as coisas se tornam especialmente interessantes: Korchnoi alegou que Karpov, se quisesse, poderia intervir e pedir ao Estado que libertasse seus familiares. Foi uma acusação que considerei muito convincente. O simples respeito por seu adversário deveria exigir que Karpov fizesse este pedido e permitir que a família se reencontrasse e pôr um fim a uma acusação muito forte e emotiva, ao mesmo tempo garantindo que a importante questão da supremacia do xadrez soviético fosse resolvida no tabuleiro.

Foi somente anos depois de Korchnoi ter deixado de ser uma ameaça ao título do Campeonato Mundial que sua esposa Bella e seu filho Igor tiveram permissão para sair da União Soviética e viver no Ocidente. Victor acabou se divorciando e casando novamente. Que eu saiba, Karpov jamais intercedeu em nome dos familiares de Victor.

Karpov era um enxadrista formidável, mas ele não adquiriu sua força sem ajuda. A União Soviética era a maior usina de xadrez do planeta. Os melhores enxadristas do mundo vieram da URSS e Karpov passou sua vida inteira competindo com eles. O Estado patrocinava-o, seus treinadores e as sessões de treinamento, supria-o de livros e materiais de xadrez e garantia que ele fosse um profissional de xadrez em tempo integral e bem cuidado. Ele podia dedicar seu tempo e energia ao estudo e jogo e era simplesmente inevitável que seu talento lhe permitisse emergir como um forte Grande Mestre.

Em diversas ocasiões, li palavras de pessoas esclarecidas dizendo que Bobby Fischer foi “o primeiro profissional do xadrez” do mundo, como todos temos uma “dívida” com ele por seu “profissionalismo” e como ele preparou o caminho para que outros também se tornassem profissionais. Bobby tinha uma postura profissional, mas é risível considerá-lo o primeiro profissional do xadrez. A URSS tinha enxadristas profissionais além de atletas profissionais muito antes de Bobby ter aprendido uma abertura. Os Grandes Mestres e Campeões soviéticos tinham apartamentos, rendas, ordenados, carros, casas de verão, férias, treinadores, técnicos e pensões por décadas antes de Bobby. Esses enxadristas dedicavam suas vidas ao seu ofício. Eles eram o epítome dos profissionais.

O que Bobby fez foi popularizar o xadrez no Ocidente e possibilitar que seus partidários no Ocidente vivessem modestamente disso. Os profissionais orientais andavam muito bem muito antes disso, com rendas muito superiores à do “homem comum” na rua.

Só para dar um exemplo, meu amigo e Mestre Internacional Nikolay Minev formou--se em Medicina na Bulgária. Depois de exercer a medicina por alguns anos, ele mudou de profissão. Tornou-se editor da revista Shakhmatna Misl da Federação Búlgara de Xadrez, além de ter um cargo fixo nos campeonatos búlgaros e na equipe nacional. Por quê? Nikolay ganhava três vezes mais como enxadrista do que como médico e, além disso, trabalhava menos horas. Como enxadrista, Nikolay tinha permissão para viajar para o exterior, o que era simplesmente impossível como médico. Os profissionais de xadrez viviam muito bem nos países comunistas e, quando seus melhores dias de jogo acabavam, podiam facilmente passar aos postos de técnicos e treinadores recebendo assim apartamentos, salários e pensões. Não estou dizendo que viver nos países comunistas era fácil; mas viver em um país comunista era muito mais fácil se você fosse um Grande Mestre. Anatoly Karpov era um enxadrista profissional e devia sua subsistência ao Estado Soviético. À medida que foi acumulando sucessos, seus privilégios também aumentaram. Ele dispunha dos melhores treinadores, dos melhores técnicos e das melhores bibliotecas de xadrez que a URSS podia oferecer. Uma lista muito longa de enxadristas, incluindo Mikhail Botvinnik, Igor Zaitsev, Lev Polugaevsky, Efim Geller, Semyon Furman, Mikhail Podgaets e Mischa Tal, trabalhou para e em nome de Anatoly Karpov. A nata dos treinadores soviéticos ajudou Anatoly a afiar seu jogo. Se Bobby contava “só consigo mesmo” em seu treinamento e preparação, Anatoly era o extremo oposto e contava com o trabalho de muitos em seu auxílio. Mais uma vez, estamos falando sobre o melhor dos melhores – no mundo inteiro. Anatoly estava no ápice de uma vasta pirâmide onde todas as coisas boas fluíam da base para o topo. Como o diretor de cinema Mel Brooks diria, “é bom ser rei!” Como resultado de todo o treinamento rigoroso, auxílio de fortes Grandes Mestres e estudiosos de aberturas e competição com e contra os melhores enxadristas do mundo diariamente, não é de surpreender que Anatoly tenha se tornado um dos melhores enxadristas do mundo. E, sempre que possível, as autoridades soviéticas não deixavam nada para o acaso. De seu ponto de vista, fazia todo o sentido que “seu” Campeão Mundial tivesse o melhor de tudo. Outra paráfrase vem à cabeça, desta vez de George Orwell: “Algumas igualdades de condições são mais iguais do que outras...” Com todas essas vantagens, poderia haver outro desfecho? Mais um detalhe merece ser mencionado: Anatoly era incrivelmente talentoso. Isso também ajuda, é claro.


Karpov como enxadrista

O que quero dizer quando digo que Anatoly era “talentoso”? Em minha concepção, Anatoly tinha talentos que poucos possuíam. Ele tinha uma grande memória (todos os grandes enxadristas têm); tinha fantásticas habilidades de cálculo, identificando variantes prolongadas com clareza, calculando com precisão e julgando as posições resultantes muito bem. Além dessas habilidades que podem ser ensinadas, ele tinha algo inato: uma capacidade de harmonizar suas peças que poucos jamais possuíram. Anatoly jogou centenas e centenas de grandes e bons lances, cometeu pouquíssimos erros e ainda menos erros graves e, durante todo o tempo em que fazia seus lances, também ia tecendo uma alegre composição harmônica baseada em seu maravilhoso talento intuitivo. Suas partidas eram a um só tempo uma mistura poderosa de arte, lógica e cálculo. Esta “coesão de forças” era quase instintiva para ele. Era uma habilidade que ninguém jamais foi capaz de imitar. Karpov não era perfeito; ele tinha estilo. Um estilo que ninguém jamais viu antes nem depois. Derrotar Karpov era uma tarefa quase impossível. Por quê? Bem, a profundidade de seu conhecimento de aberturas era impressionante. Sua defesas e aberturas foram aprimoradas em profundidades nunca igualadas. Para vencer, você precisava obter uma vantagem na abertura, e seus treinadores trabalhavam noite e dia para garantir que isso não acontecesse.

Caso você conseguisse uma vantagem na abertura, então você teria que nutri-la durante o meio-jogo. De alguma forma, você teria que jogar melhor do que um dos enxadristas mais talentosos e diligentes que já se viu.

Depois de ter sido capaz de manter sua vantagem até um adiamento, você teria outra desvantagem completamente diferente: a formidável equipe de treinadores e assistentes de Karpov analisava a posição com uma profundidade nunca igualada. Essa equipe de treinadores de elite só ajudava a aperfeiçoar o esplêndido final de jogo de Anatoly. Possivelmente, ele foi o melhor jogador de finais desde Vassily Smyslov, talvez o melhor jogador de finais de todos os tempos.

Para recapitular, como se costumava dizer sobre Alekhine, para derrotar Anatoly era preciso vencer três vezes para ganhar uma partida: na abertura, no meio-jogo e no adiamento/final. Além disso, você precisava derrotar não apenas Anatoly, mas, com efeito, seu exército de ajudantes. As derrotas de Karpov em algum ano entre 1975 e 1985 geralmente poderiam ser contadas com os dedos de uma mão. E ele era um enxadrista muito ativo.

Anatoly tinha dois amargos rivais, além da sombra de Fischer: Victor Korchnoi e Garry Kasparov. Enquanto Mohammed Ali tinha seu Joe Frazier, Anatoly tinha dois inimigos mortais e as disputas que eles produziam uns contra os outros. No fogo de seus três matches com Victor Korchnoi, pareceu-me que Karpov se aperfeiçoou, ao passo que, nos cinco matches pelo Campeonato Mundial sem precedentes entre Karpov e Kasparov, pareceu-me que Kasparov se aperfeiçoou.


Encontrando Karpov

Não é de surpreender que meu primeiro encontro com Anatoly Karpov esteja inesquecivelmente aliado a Garry Kasparov. Retornamos à Olimpíada de 1980 em Malta. Como mencionado, as equipes americanas estavam alojadas em um complexo de apartamentos fora de Valletta; as equipes soviéticas, em contraste, estavam no melhor hotel de Valleta, do qual era fácil ir a pé até o local de jogos. Fora das rodadas de jogo, quase não víamos as equipes soviéticas. Lembro-me da ocasião que gravou em minha mente muito bem a impressão que tive destes campeões: eu estava observando diretamente a equipe soviética masculina; eles estavam jogando contra a Bulgária, e os jogadores búlgaros estavam de costas para mim. Naquela rodada, os Estados Unidos jogavam contra a Hungria na “Mesa 1”. Eu podia observar as mesas dos jogadores desde Karpov no primeiro tabuleiro, jogando contra Evgeny Ermenkov ligeiramente à minha direita, até Garry Kasparov no quarto tabuleiro, jogando contra Krum Georgiev um pouco mais à esquerda. Eu tinha visão perfeita de tudo que estava acontecendo.

Eu sabia que Garry tinha cometido um erro grave na abertura/início do meio-jogo e estava em péssima posição. (Eu já tinha andado em volta das mesas antes observando as partidas em andamento.) Anatoly deu seu lance no primeiro tabuleiro, levantou-se, atravessou para o “lado búlgaro” da mesa e começou a percorrer os tabuleiros, verificando as partidas até chegar à mesa  junto à parede. Parou no tabuleiro de Kasparov e começou a rir da difícil situação de Garry. Garry ficou furioso. Enrubesceu e disse rispidamente algo em russo acenando com a mão, “convidando” Anatoly a sair. Foi chocante, falando-se em espírito de equipe. Anatoly entendeu o recado e saiu arrastando os pés para pegar uma xícara de café.

Até aqui as coisas tinham sido apenas “divertidas”, mas agora elas se tornam realmente sublimes. Garry decidiu-se por seu lance, fez um movimento drástico com a mão e a peça (no sentido físico), esmurrou o relógio, levantou-se e foi diretamente olhar a posição no primeiro tabuleiro. Estudou-a por alguns minutos e depois aproximou-se de Evgeny e sussurrou algo em seu ouvido.

Eu fiquei excitado. Esperei Garry sair e fui até Evgeny perguntar-lhe o que havia acontecido. Evgeny me contou que Garry dissera-lhe em russo: “Você está melhor. Em breve Karpov irá oferecer um empate. Não aceite!” Era muito engraçado. De passagem, devo mencionar que somente um regime comunista totalitário conseguiria manter estes dois homens na mesma equipe. Fala-rei mais sobre isso nos capítulos a seguir. A propósito, Garry estava absolutamente certo, e alguns lances depois Anatoly ofereceu mesmo um empate. Contudo, Evgeny não seguiu o conselho de Garry e aceitou a oferta de empate.

Encontrei tanto Garry quanto Anatoly oficialmente durante a 11 a rodada do match de União Soviética contra Estados Unidos, quando enfrentei Mischa Tal. Houve vários apertos de mão, e minha recordação era de que tanto Anatoly quanto Garry se comportaram (ao menos naquela ocasião) muito profissionalmente, pelo menos comigo. Meu companheiro de equipe, Lev Alburt, jogando no primeiro tabuleiro, sentiu de outra forma. Lev tinha desertado da União Soviética e vinha se “fortalecendo” para jogar contra Karpov no primeiro tabuleiro. Estivera ansioso para apertar a mão de Karpov – seria seu modo de dizer: “Veja. Estou aqui. Eu desertei, mas ainda estou vivo.” Karpov não aceitou. Quando Lev estendeu a mão para cumprimentá-lo, Karpov deixou claro que não haveria gestos de cordialidade e recusou a mão. Lev ficou totalmente murcho e jogou uma péssima partida. Talvez a pior de sua carreira. Fiquei decepcionado com Karpov por causa deste incidente. Muitos anos depois eu o questionei sobre isso. “Por que nem apertar a mão de Lev?”, perguntei inocentemente. Sua explicação revelou a quantos mundos de distância vivíamos: “Yasser, aquilo foi na época da União Soviética. Não se esqueça de que estávamos sendo constantemente vigiados. Tudo que fazíamos e dizíamos era monitorado ou ‘registrado’ de alguma forma. Lev era um desertor. De acordo com o Estado, oficialmente um criminoso. Se eu tivesse sido visto apertando sua mão, isso teria sido relatado e eu enfrentaria um inquérito e teria que me explicar. ‘Por que você apertou a mão de um criminoso de Estado?’, perguntariam. Seria uma mancha na minha ficha.”

Vista daquele ângulo, compreendi a decisão de Anatoly. Eu não iria querer uma mancha na minha ficha na CIA. Mas eu tenho uma ficha na CIA? A vez seguinte em que encontrei Anatoly foi mais confusa. Lembro que eu estava na Espanha, talvez de férias, e que fiquei entediado e decidi por impulso dar uma chegada no torneio de Linares de 1981. Como Larry Christiansen e Lubomir Kavalek estavam participando, eu tinha um motivo para vadiar por uns dias. Enquanto estava lá, eu ajudava Larry um pouco a se preparar para suas partidas e também dizia palavras de incentivo antes de cada rodada. O que quer que tenhamos feito não foi mau. Larry empatou com Anatoly em primeiro lugar. O incidente do qual me recordo (e realmente penso que ele aconteceu em Linares durante esta visita) é que estávamos numa partida de bridge com apostas muito pequenas em pesetas espanholas, quase insuficientes para pagar uma rodada de bebidas. Larry era meu parceiro e estávamos jogando com Kavalek e Karpov. Eu era de longe o pior jogador da mesa e Larry tinha que carregar a dupla, mas não estava sendo bem-sucedido o suficiente, infelizmente, pois eu e ele estávamos sendo arrasados. (Ou seja, provavelmente estávamos devendo duas rodadas de bebida.) Em um determinado momento, Lubosh foi até o bar para pegar uma rodada de bebidas enquanto Anatoly foi ao banheiro, de modo que eu e Larry ficamos sozinhos. “Vamos mexer no baralho,” sussurrou Larry para mim. “Que?” “Vamos arrumar a próxima mão de cartas. Quando eles apostarem, você dobra, certo?” Bom, vamos dizer que o diabo ficou por cima desta vez, e eu concordei. Num instante Larry tinha arrumado o baralho. Vamos ser claros, este não foi um momento de Ian Fleming, em que James Bond faz a troca por um baralho falso. Larry fez a coisa quase instantaneamente. Ele tinha prática? Quando Anatoly começou a caminhar de volta para a mesa, ele pôde ver que eu fiz um show ao “cortar” as cartas como ardil de que tudo estava direito. Lubosh voltou com as bebidas e ficou contente ao descobrir que uma mão muito boa aguardava sua chegada. Entre si, eu acho que eles tinham 34 pontos e começaram a “jogar” ligeirinho. Eu, é claro, dobrei – sem absolutamente nenhum motivo. As ofertas tinham sido totalmente unilaterais. Isso provocou um “redobre”, que causou muitas risadas, pois nossos adversários começaram a reclamar que aquilo era um insulto... No fim, Anatoly jogou o contrato, e Lubosh ficou feliz à beça de mostrar suas figuras. Anatoly começou com as palavras “Ai-ai-ai.” Compreendeu imediatamente que suas cartas duplicavam as figuras e que ele seria sem dúvida sortudo de fazer o contrato. Bom, quis a sorte que todas as finesses deram contra ele. Anatoly, que Deus o abençoe, praguejou a cada vaza perdida. Eu definitivamente tive a impressão de que o russo é uma língua rica em que se pode praguejar muito bem. Foi uma curtição e tanto.

Até hoje não sei como eu e Larry nos seguramos e não explodimos em risadas convulsivas. Lubosh deu a volta na mesa para ver o dilema de Anatoly e disse algo como “Ah, meu Deus. Vou pegar outra rodada...” e saiu. Bom, Anatoly desceu feio, algo como quatro vazas, vulneráveis, dobradas e redobradas. Quando Lubosh voltou, Anatoly começou uma explicação tortuosa do quanto suas cartas estavam horríveis. Eu e Larry ficamos empacados – as queixas eram tão vociferantes que não conseguimos confessar. Em vez disso, continuamos jogando calmamente como bons cristãos. Suspeito que aquela única mão levou-nos a equilibrar o placar... Essa história tem uma continuação, mas vamos deixar isso em suspense por enquanto.

Uma outra aventura daquele torneio em Linares: em um dos dias livres, os enxadristas foram convidados pelos organizadores a lutar contra touros. Eu e Larry aceitamos, e assim fomos até o campo de touradas. Quero ser extremamente claro aqui: os “touros” contra os quais tínhamos que lutar eram bezerros. Falo de animais de dois anos. Mesmo nesta idade, eles são animais grandes e muito rápidos e travessos. Não direi que fiquei “apavorado” de enfrentá-los, mas meus sinais de perigo estavam em alerta máximo e com frequência eu me virava e corria para trás de uma laje de concreto para me proteger. Nas fotos que tenho, Larry pareceu ter provado ser um toureiro melhor do que eu. Ele certamente tinha estilo. Uma coisa que posso definitivamente dizer sobre a experiência toda, qualquer que seja a opinião do leitor sobre as touradas, é que os toureiros que se colocam em frente a um touro adulto precisam ser absolutamente destemidos. Eu jamais trocaria de profissão por um único momento sequer.

A vez seguinte em que encontrei Anatoly foi no match do Campeonato Mundial em 1981 com Victor Korchnoi. Lembro-me de estar no Hotel Palace em Merano quando Petra nos informou: “Os soviéticos chegaram.” Eles tinham chegado em um grande ônibus de viagem do aeroporto de Milão. O que mais a impressionara? “Contei 35 malas”. Era realmente um número impressionante. Quantas pessoas? Por que tanta bagagem? E sim, Karpov havia chegado em um carro especial também. Nas palavras de Johnny Walker, um mestre de xadrez de Seattle, quando um patrocinador calculava um prêmio em dinheiro, “isso é o que eu chamo de patrocinador!” Em alguns aspectos, a notícia fez nossa pequena equipe de ajudantes de Korchnoi pensar. Estávamos enfrentando uma grande equipe com muitas pessoas.

Minha primeira partida contra Anatoly Karpov aconteceu em 1982 na primeira rodada de um torneio realizado no famoso balneário de Mar del Plata, Argentina. Conheci sua primeira esposa lá também. Em geral, Anatoly estava muito calmo em Mar del Plata. Ele não jogou bem, possivelmente seu pior torneio em anos, e eu também não o vi muito; meus olhos estavam focados nas praias. Todo mundo tem histórias de “um (peixe) muito, muito grande que escapou”. Bem, esta partida é uma dessas histórias. Na verdade, é a pior história de minha carreira de algo grande que escapou. Até hoje, lembrar desta partida dói. Dói como a dor de uma antiga cicatriz feia. Só posso fazer uma careta e desviar os olhos. Ainda não acredito que perdi esta partida; Anatoly estava tão perdido! Publiquei comentários para esta partida na The Weekly, uma revista local de Seattle (edição de 10-17 de março de 1982, página 31), em um artigo intitulado, The Assault on Mt. Karpov (O Ataque ao Monte Karpov).



Fonte: “Duelos de Xadrez Minhas Partidas com os Campeões Mundiais” Yasser Seirawan
https://pt.scribd.com/doc/316900478/YASSER-SEIRAWAN-Duelos-de-Xadrez-Minhas-Partidas-com-os-Campeoes-Mundiais-pdf